domingo, 25 de abril de 2010

97) DA POLÍTICA AO MAPA DA VIDA - Uma entrevista com Fernando Henrique Cardoso, por Guilherme Malzoni Rabello

[Nota: Entrevista retirada da terceira edição da Dicta & Contradicta. Endereço de origem aqui.]
Fernando Henrique Cardoso recebeu-me na sede do instituto que leva seu nome na Rua Formosa em São Paulo. Numa ampla sala de frente para vale do Anhangabaú, conversaríamos pelas próximas horas sobre os assuntos que surgissem, sem nenhuma restrição prévia. Fazer perguntas para uma pessoa que de tão falada já virou sigla não é uma tarefa fácil. Afinal, FHC é certamente um dos homens mais influentes do Brasil. Suas declarações direcionam os rumos da discussão política do dia e suas opiniões, por mais acidentais, costumam suscitar debates acalorados. 
É natural que seja assim, mas não era exatamente isso que me interessava. Mais importante do que a opinião sobre este ou aquele assunto, importavam suas idéias, que tiveram tantas conseqüências práticas na história recente do Brasil. O desafio ali era ter a calma necessária para ir mais longe, era fugir da atualidade para entendê-la melhor, era enfim, lembrar que para além de toda contingência existe o homem que acumulou uma rica experiência: o sociólogo com importantes trabalhos publicados, o líder político que presidiu o Brasil por oito anos e alguém que, aos setenta e sete anos, continua a refletir sobre os enigmas propostos pela vida.
Foram dois encontros no iFHC e mais de duas horas de conversa. O resultado é o que segue nas próximas páginas.
GMR: Queria começar falando de sociologia e um pouco de ciência política. Max Weber diz, na Ciência como vocação, que a ciência: 1. “coloca naturalmente à nossa disposição certo número de conhecimentos que nos permitem dominar tecnicamente a vida por meio da previsão”; 2. “nos fornece um método de pensamento”; e 3. “contribui para a clareza”. Como é notório, esses três princípios não fazem nenhuma referência a um conhecimento que seja verdadeiro, nem a uma noção de verdade. Queria saber até que ponto a sociologia sofre as conseqüências de ser uma ciência essencialmente não valorativa, e até que ponto isso foi importante na formação do seu pensamento?
FHC: Esta abordagem me influenciou não só pela via de Max Weber, mas pela de Durkheim também, ou de Marx. Na verdade, de Marx, paradoxalmente, talvez menos, pois ele sempre tinha uma filosofia da história, alguns valores, alguma crença… Mas sem dúvida a sociologia e a ciência política ficaram muito marcadas, digamos assim, por uma visão positivista. Embora o Weber não sejastrictu senso positivista, quando eu era aluno essa era uma obsessão dos meus professores, especialmente do Florestan Fernandes, que queriam fazer uma sociologia como Ciência Empírica, que lidasse com fatos, com dados; por isso, o meu treinamento sempre foi assim. Nos Estados Unidos essa tendência se exacerbou ainda mais, com as técnicas quantitativas e a crença na possibilidade de utilizar até mesmo raciocínios matemáticos para explicar os fenômenos sociais. Numa certa altura, a ciência política, à imitação da economia, transformou-se numa ciência que pressupunha ação racional. Ora, a ação não é necessariamente racional.
No meu caso, no caso da minha geração na faculdade, tínhamos uma certa ambivalência entre essa visão empiricista – porque líamos muito Dilthey – e o pensamento socialista, pelo qual também estávamos muito influenciados, embora vagamente. Naquele momento, não havia ainda a obsessão pela leitura do Marx; havia, sim, uma idéia de que era necessário “mudar”, tinha de haver um “projeto”… Mas era sobretudo a idéia da diferenciação entre ciências humanas, ciências históricas e ciências da natureza que estava muito presente, fazendo-se a distinção de que, nas ciências humanas, além de explicar, é preciso interpretar, compreender os motivos e o sentido das ações. Portanto, sempre houve – em Weber também – uma certa brecha para escapar de uma visão puramente objetivista da sociedade, por intermédio da história, pelo sentido das ações.
Hoje, acho que a predominância da visão positivista é maior ainda, através da sociologia dita empírica. A ciência política na literatura atual, nas revistas especializadas, é quase ilegível, porque se postula um homo politicus, tal como a economia postula um homo oeconomicus. Mas, na verdade, isso não funciona: está-se vendo a toda hora que há o imprevisível, o acaso, enfim, que as coisas não são dessa forma – como também não o são na economia, como acabamos de ver nesta crise, pelo desencontro que há entre as previsões e a realidade.

Como o senhor nota em A arte da política, há risco de o weberianismo vulgar acabar se confundindo com a frase comumente atribuída a Maquiavel de que “o fim justifica os meios”. Mas se tudo o que a ciência, a sociologia, nos proporciona – sempre segundo Weber – são conhecimentos técnicos, um método e clareza, como garantir que essa ciência não vai passar a ser instrumentalizada? Ou seja, a ser usada para justificar fins totalmente externos a ela?
Não há garantia nenhuma de que isso não aconteça: a ciência pode virar mera manipulação. Obviamente, li muito Descartes, e é claro que, no Discurso sobre o método, ele também mostra que a objetividade e a clareza são componentes efetivos do método científico. A confusão que não se pode fazer é imaginar que a ciência seja igual à verdade, ou então que ela seja todo o conhecimento possível, que esgote a realidade. Weber tem plena noção de que a realidade é inesgotável, e não tinha a pretensão de apresentar a explicação. Portanto, acho que certa humildade é necessária para o sujeito não cair numa visão vulgar, patética, de que o dado explicaria tudo por si mesmo.

O que deveria orientar a ciência, então? O bom senso?
Por um lado, o bom senso, a lucidez cartesiana. Só que, para o Descartes, bom senso era a razão. O bom senso, diz ele, “c’est la chose la meilleur partagée”(“é a coisa mais bem distribuída”); de fato, nesse sentido pode ser que sua posse obedeça a uma espécie de curva normal.
Mas acho que o bom senso apenas não basta. Você nunca consegue resolver essa charada de um ponto de vista meramente objetivista. Tem de haver valores, crenças, temos de ter fins, propósitos. Lembro-me de que, quando estávamos em grandes discussões metodológicas – quando escrevi o livroCapitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962) estava no auge do metodologismo –, o que nos dava uma bóia de salvação era Sartre, porque Sartre tinha a idéia do “projeto”. De alguma maneira, essa idéia já está inscrita na dialética marxista, mas ali está inscrita nas coisas, ao passo que em Sartre, não: é você que tem de ter um projeto.

Olhando agora não mais para os princípios, mas para os fins: como encarar a questão do bem e do mal na sociologia? O Weber separa as duas éticas, a “ética de responsabilidade” e a “de valores”. Também na ação prática o senhor diria que existe um bem político e outro que não é estritamente político, ou o bem precisa ser tomado como valor absoluto?
Ao fazer essa distinção, Weber não separa totalmente a ética de responsabilidade da ética de valores, enfim, dos valores finais. O político tem de ter a ética de responsabilidade: precisa saber que será responsável pelas conseqüências dos seus atos, mesmo que não sejam intencionadas. Esse é o grande drama do político: assumir responsabilidade por aquilo que não se tinha como propósito. Por isso, as conseqüências dos atos devem ser medidas. Mas, se você separa isso da questão de quais são os valores que embasam os atos, qual a finalidade dos seus atos, acho que você se torna um mero pragmático; há nisso muito de falso racionalismo.
 Weber tinha valores, como você sabe; era apaixonadamente nacionalista. O que ele quer mostrar é que, na análise, é preciso separar uma coisa da outra. Ao julgar o comportamento do líder político, é preciso ver se ele responde pelos atos que praticou ou deixou de praticar, e se levou em conta as conseqüências deles ou não. Agora, isso não elimina o julgamento sobre se cada um desses atos é bom ou é mau; aí é que entra o valor, a ciência não vai responder a essa questão. Isso é moral, filosofia transcendental ou o que seja. Mas a ciência não vai resolver essa questão, pois a ciência não é o mapa da vida.

Parece-me que, no exercício da política, você sempre tem convicções, princípios, quer sejam explícitos, quer não. Essas convicções obviamente estão dentro de um espectro amplo; mas talvez pudéssemos separá-las entre convicções de tipo idealista, em que se encara a realidade sempre a partir de um ideal, e, no extremo oposto, uma realpolitik em que o ideal não contaria para nada, só contaria a realidade nua e crua. Como encontrar um meio termo? Na sua experiência, qual seria esse meio termo?
Não é uma pergunta fácil. Veja o próprio Maquiavel, que não era um “maquiavélico” no sentido vulgar do termo. Penso em toda a temática que ele levanta, a do grande homem, do líder, do “príncipe”…
Em todo o caso, você precisa ter um limite entre a ética de convicção e a ética de responsabilidade. E, nesse campo, eu diria o seguinte: não creio que exista um road map, que você possa dizer “vou por aqui”. Sempre há um momento de incerteza, em que você pode acertar ou pode errar. Acredito que o verdadeiro líder, ao mesmo tempo em que tem noção, digamos assim, da calculabilidade dos seus atos e das suas responsabilidades, também tem de ter os seus objetivos, e aí entra o aspecto valorativo. E você vai ser julgado em função dos dois aspectos, vai responder por eles, quer queira, quer não.
Em cada decisão importante não há uma medida certa, há apenas um espaço, quase um vazio. Você se joga na piscina e de repente não tem água; pensa que está fazendo um bem, e pode fazer um mal. Agora, se você não tem a motivação de fazer um bem, se você só se jogar na água quando tiver certeza de que está a piscina está cheia, vira um manipulador.
Penso que todo o líder que transcende não pode ficar só nisso; precisa ter uma convicção, tem de acreditar em alguma coisa. Você não tem uma medida disso do ponto de vista objetivo: é um valor em que você acredita ou não, que quer ou não quer, acha bom ou acha mau. Só que não é possível separar esse argumento de subjetividade de uma análise puramente objetiva.

Quais foram, então, os valores básicos que orientaram o senhor?
No meu caso, o primeiro valor era a liberdade, a democracia. Para mim, isso era mais importante que todo o resto. São coisas banais, mas importantes. E o segundo é a igualdade: perguntar-se a que levam as ações políticas, no sentido de melhorar ou piorar a situação das pessoas, sobretudo das que mais necessitam.
O resto é instrumental; você pode, por exemplo, ter desenvolvimento econômico, mas isso depende de mil coisas. Aqueles dois valores, porém, não são instrumentais: você tem de assegurar a maior liberdade no sentido institucional e pessoal, garantir espaço para que as pessoas se desenvolvam e se manifestem. E depois perguntar-se se as suas políticas estão levando à melhoria objetiva da situação social do país, e se é suficientemente competente para utilizar o instrumental – o crescimento, o desenvolvimento – a fim de fazer isso.

Até que ponto é legítimo que a política leve a sociedade para uma realidade essencialmente diferente daquela que ficou historicamente consolidada? Quanto a política pode mudar e quanto ela deve mudar, tendo em vista a idéia do progressismo e da revolução?…
Acho que, se não tiver uma idéia de que pode melhorar alguma coisa, um projeto, você não avança. E não acho que as coisas se modifiquem por si mesmas, pela sua dinâmica própria. Quer dizer, não penso que a dialética esteja inscrita automaticamente nas coisas, como diz a visão marxista tradicional; penso que é necessário haver sempre uma tentativa de superação. Essa tentativa de superação, entretanto, não pode ser baseada apenas no desejo. E aí entra a questão do cálculo: você precisa ter a capacidade de articular os fatores que estão ao seu alcance para que o resultado se produza.
Nunca se deve considerar que uma situação é satisfatória, porque as aspirações humanas mudam e as condições materiais para alcançá-las não são estáticas, são dinâmicas. Por isso, a política não tem uma resposta única: você tem de ter criatividade, ver a cada momento o que é possível fazer tendo em vista o que você deseja. Obviamente, pode passar pela sua cabeça que só você deseja aquilo, mas em geral o que você deseja, muitos o desejam também, e se o seu desejo não tiver um suporte efetivo na sociedade você não vai longe. O político não é um pregador, é quem faz o caminho. Não dispensa o pregador, deve ter uma pitada de convicção, mas é quem faz o caminho. O tempo todo o político está tentando ver se é capaz de ampliar o caminho, ou de criar um caminho novo para chegar aos seus objetivos.

De maneira não necessariamente gradual…
Acho que depende das circunstâncias. Na sociedade moderna, dificilmente deixará de ser gradual, porque ela é tão complexa e tão fragmentada, tem tantos desejos desencontrados, tantas possibilidades também desencontradas, que é quase impossível imaginar que se possa alcançar os objetivos por uma ruptura. Eu fui criado na teoria da ruptura, da revolução. Na minha época, mudança era revolução. Isso já mudou muito, e mudou não só porque as rupturas sempre custaram muito caro à humanidade – a experiência recente foi bastante traumática –, como porque se tornou mais difícil de mudar a sociedade por ruptura.

Outra questão que envolve o estado moderno é a idéia do “Estado como espetáculo”, ou seja, a midiatização cada vez maior da atividade política, como se mostra nos grampos, CPIs etc. É como se o estado não mais desse “o pão e o circo”, mas se transformasse ele mesmo no circo. Isso é inevitável? Até onde vão as conseqüências negativas disso tudo?
O que está acontecendo, e me preocupa, é a própria vida como espetáculo! Porque com isso fica difícil ter um projeto coletivo: quando o Estado e a vida se tornam “espetaculares”, você passa a ter outra coisa – individualidades fortes que expressam um sentimento, mas esse sentimento não precisa necessariamente estar ligado a um projeto coletivo. O coletivo fica como que subsumido pela espetacularidade do gesto, da ação. Como manter, neste caso, a democracia e a liberdade é um problema em aberto.
Na teoria clássica da democracia, a decisão implica em um momento de razão, em uma escolha. Quando você substitui a escolha individualizada por uma emoção coletiva – porque a emoção é coletiva e o ato espetacular é individual –, isso é essencialmente não-democrático. É algo que tem muito mais a ver, como ocorreu no passado, com as estruturas totalitárias, que usavam a espetacularidade como manipulação. Minta, minta, minta que a mentira se tornará verdade. De alguma forma, estamos vivendo num mundo em que a mentira se torna verdade pela repetição, pela iconização do sentido das coisas.
Isso requer uma reflexão nova: Como é possível atuar democraticamente nesse tipo de sociedade? Como será possível utilizar os instrumentos que permitem à sociedade ser espetacular de uma maneira que contenha elementos de razão? Talvez a generalização da internet abra caminho para uma resposta, pois a internet mantém você conectado, embora separado fisicamente; e o comportamento, na sociedade espetacular, requer  a presença física para mostrar a  espetacularidade, ao passo que a internet fragmenta mais. Se for possível – é uma questão, não sei a resposta –, se for possível haver um sentimento de responsabilidade social, um sentido de compromisso social, embora cada um esteja isolado; se for possível haver uma sociedade que, embora individualista, fragmentada, mantenha, mesmo tempo, o sentimento de que precisa haver alguma forma de coesão social, quem sabe seja possível criar formas políticas novas. Porque o fato é que as estruturas tradicionais, como os partidos, encontram enorme dificuldade para sobreviver à espetacularidade. Na verdade, estão sucumbindo, perdendo força diante do gesto espetacular.

Uma pergunta ampla, e propositadamente ampla: até que ponto a política pode salvar? A política pode levar até onde?
Idealmente, leva para melhor. Você não tem política no sentido forte sem voltar aos gregos, quer dizer, sem se perguntar em que consiste a felicidade dos povos, como se faz a felicidade do povo. A política, em essência, é isso: Como trazer o bem-estar. É preciso voltar a isso.

Um dos pensadores que mais ênfase deu à idéia da cultura como fundamental para mudanças políticas foi Antonio Gramsci. O que o senhor pensa da sua obra?
Gramsci tinha uma idéia específica: para ele, era o Moderno Príncipe, o Partido, quem seria o regenerador dos valores, e ele via esse processo também como manipulação. O partido deveria tomar conta, apropriar-se da cultura.  Gramsci teve a perspicácia de perceber, no panorama do mundo marxista, socialista, comunista de então, que não bastava pensar em infra-estrutura e superestrutura. Na linguagem de Marx, a cultura é superestrutura; na verdade, pode-se inverter isso, ela pode ser o fator que conduz, não anda automaticamente como conseqüência mecânica da infra-estrutura. Por isso Gramsci teve tanta importância.
Agora, ele não mudou a visão de que haveria uma determinada classe portadora dessa cultura, dos valores universais. Eu penso de outra forma: no mundo atual, os valores são muito mais difusos, você não pode ter a pretensão de que um setor da sociedade vá primar sobre os demais e deva usar a cultura como instrumento de dominação. Eu tenho uma visão, digamos, mais democrática desse processo.

A partir de um determinado momento, principalmente durante o Regime Militar, o Gramsci foi muito importante para certa parte da política brasileira…
Foi, porque foi um mecanismo da política brasileira entender que a ação pesa.

Então essa idéia de começar uma revolução, entrar pelos valores da sociedade com um objetivo político pode ser positivo?
Em si pode, pode ser positivo. Aqui não foi, não por causa do Gramsci, que não é responsável pelo que fizeram Brasil. E não foi positivo porque alguns grupos, ao invés de tentar ir pela via do convencimento, digamos, gramsciana, foram para a guerrilha.
Mais tarde o PT tentou ser gramsciano, mas não deu o segundo passo, que poderia realmente ser o mais revolucionário. Ou seja, não renunciou à concepção de que o Estado é que vai mudar a sociedade. Eles fizeram quase que um caminho pela cultura, pelo convencimento, para chegar ao Estado, com a idéia de que o Estado depois muda a sociedade, mas isso não se deu, perderam-se. Ficaram com o domínio (provisório) do estado e nada de significativo mudaram na sociedade.
 Eu não creio que seja possível imprimir um selo, uma marca cultural, de cima para baixo. A cultura hoje é muito mais viva, muito mais dinâmica, muito mais diversificada e não tão colada aos interesses de um segmento, de uma classe que o Estado possa expressar.

Ainda nessa questão de ideologia, num artigo publicado na Folha de S. Paulo o senhor dizia que a universidade deveria “voltar à vocação inicial de valorizar um método de análise, no qual a pluralidade cultural e a paixão pela pesquisa não ficam submersos na ideologia”, pois, “quando os formadores de imagem [os intelectuais públicos] produzem [as imagens] sem maior conhecimento de causa, orientando-se mais por crenças do que por análises, podem causar dano ao próprio povo”. Como o senhor enxerga a situação das humanidades atualmente nas universidades brasileiras?
Estou bastante afastado do dia-a-dia da universidade, mas a sensação que tenho pelo que me chega – e não é tudo o que me chega –, é que a universidade melhorou muito na qualidade da pesquisa. Mesmo nas ciências humanas a produção é boa, quer dizer, sabe-se mais sobre mais coisas, tem-se mais informação com certo rigor. Para recordar o início da nossa conversa, a sociologia como ciência empírica avançou como um todo: há muito mais conhecimento de situações, formas de regularidade etc.
Porém, quando falamos de intelectuais – entendendo-se por intelectual quem forma uma imagem, quem produz uma visão –, acho que esse aprofundamento da pesquisa não se deu simultaneamente com o alargamento da experiência vital dos intelectuais: como, em geral, os acadêmicos sabem pouco da vida, têm muito pouca ligação com o que acontece no resto da sociedade, acabam produzindo ideologia, distorcendo muito. E a ideologia predominante é uma mistura de marxismo vulgar com um catolicismo popular, os dois pouco sofisticados.
O resultado é, enfim, um saber de segunda categoria, mas que tem efeito porque se multiplica. Se ficasse isolado na universidade, teria um efeito menor; mas essa visão simplificada vai para o púlpito, vai para o jornalismo e acaba indo para o Congresso e para a política.. E retorna, porque depois é justificada por esse tipo de intelectuais ideológicos.
Evidentemente, o intelectual tem que ter valores, mas ideologia não é isto, é distorção das coisas por um viés imune aos fatos e à mudança deles. De forma que continuo a pensar que o trecho que você citou continua a se aplicar, sim, mas paradoxalmente sem negar o avanço. É imensa a quantidade de livros que recebo, de teses publicadas. O curioso é que muita dessas pessoas quando vão pensar sobre o movimento da sociedade, comportam-se, não como pensadores, mas como ideólogos.

Pensando num exemplo específico, que é o aumento da criminalidade no Brasil, principalmente a partir da década de 60, não haveria uma relação entre as duas coisas? Ou seja, a ideologização do ensino universitário, e da cultura em geral, não seria paralela à ideologização do crime organizado? Quando faz uma rebelião, o PCC não pede colchões, comida melhor e não ter que usar uniforme; as reivindicações são Paz, Liberdade e Justiça
Nunca pensei nisso; talvez haja. Agora, quando eles pedem “Paz, Justiça e Liberdade”, isso é da boca para fora. É uma racionalização que encontra legitimidade na ideologia.  Mostra que eles perceberam que isso “pega”.

Em A ciência como vocação, Max Weber diz que “A educação científica, tal como, por tradição, deve ser ministrada nas universidades alemãs constitui numa tarefa de aristocracia espiritual. É inútil querer dissimulá-lo”. Essa afirmação não vai totalmente de encontro à idéia que se tem de educação aqui no Brasil?
Bem, ele estava convencido disso. A universidade alemã era isso mesmo. E, de alguma maneira, aqui no Brasil temos uma visão populista do que é a vida intelectual. Esse populismo leva ao horror da diferenciação: se alguém é bom em algo, isso é ruim, porque ficou diferenciado. Mistura-se o que seria diferenciação de origem com diferenciação por você ter aprendido mais, por ter sido competente ou ser melhor dotado.
Ora, a vida acadêmica requer essa meritocracia. Meritocracia não quer dizer privilégio, não quer dizer aristocracia no sentido popular; quer dizer competência, trabalho, mais talento. Se você não valoriza isso, mas valoriza uma falsa homogeneização, não há como desenvolver boa ciência. A meritocracia requer avaliação, por exemplo, e não há nada que horrorize mais um sub-intelectual do que a avaliação, porque ele vai se revelar “sub”. E nada que o horrorize mais do que um verdadeiro intelectual, porque é diferente dele.
Isso é ruim, pois nesse tipo de percepção há uma espécie de populismo que vai contra tudo o que é a vida cultural. É uma atitude que prevalece em certos círculos, mas não leva a nada, apenas ao empobrecimento da vida cultural. A vida cultural, no sentido restrito de cultura, é feita de diferenças, de acumulação. Uns criam mais que outros. Você tem de tirar o chapéu para quem cria; isso não quer dizer que desdenhe quem não cria. Você tem de respeitar as pessoas como seres humanos, dar-lhes condições de igualdade; mas há que diferenciar o percurso de cada um: este aqui fez tal coisa, é bom intelectualmente; já o outro talvez não seja tão bom assim, ou não fez nada… Neste aspecto, não são iguais.

Como o senhor dizia, a cultura em sentido restrito no Brasil de hoje certamente é melhor que há dez anos. Mas parece predominar uma certa apatia, que se mostra por exemplo na falta de debates culturais sérios.
Do ponto de vista da qualidade e da quantidade, certamente é muito melhor o que se faz hoje do que há vinte, trinta ou quarenta anos. É indiscutível. Mas hoje são muito mais raros certos pensadores que havia no passado – e isso não é uma crítica, porque é uma realidade –, que são os maîtres à penser. Na França do meu tempo, havia o Aron e o Sartre, que dividiam entre si a área de ciências humanas. Hoje, não temos mais maîtres à penser.
Os EUA nunca os tiveram. Ali, cada universidade segue a sua linha, as capelas são múltiplas e não há hierarquização entre elas; e nós, aqui, vamos em direção a uma situação como a americana. Com a fragmentação, a formação de capelas específicas, que não se comunicam, não há debate.

Mas nos EUA há debate…
 Muito mais do que aqui, mas menos do que na França, no passado. Ou, por outra, não é que haja menos, é que ele é menos orgânico. Mas ser menos orgânico não é grave, porque mesmo assim há. O que é grave, aqui, é que você tem um isolamento sem conversa, a não ser entre um pequeno círculo, que não é de conversa, não é de discussão, é de adoração. Isso, realmente, precisaria ser rompido.

Ainda nessa questão das posições culturais, queria entrar um pouco no que pensa do que se costuma chamar conservadorismo. Há uma primeira dificuldade básica: afinal, o que é isso? A resposta a essa pergunta é muito difícil, e um dos motivos para isso é certamente o desinteresse dos próprios “conservadores” em definirem uma cartilha para o seu pensamento. O resultado é que a opinião que acaba prevalecendo é mais ou menos a descrição feita por John Stuart Mill: “The Stupid Party”. Conservadorismo é apenas o “Stupid Party”?
 Penso que no Brasil simplesmente não existe um pensamento propriamente conservador. Não existe. Nem na política há quem se defina como conservador, o que é uma coisa estranha. Talvez tenha havido no passado, mas hoje não há. Como também não há um pensamento oposto ao conservador. Há quase um não-pensamento, girando ao redor do que se imagina que seja uma amálgama de idéias de senso comum: todo mundo quer o bem de todos, todo mundo quer o bem do povo.
Impressionou-me muito algo que ouvi numa tese defendida há muito tempo na USP por uma moça chamada Paula Beiguelman sobre os estilos de pensamento no Brasil. Ela distinguia entre o pensamento “conservador”, o pensamento “democrático” – não me lembro exatamente se era isso – e o pensamento “socialista” no século XIX. “Socialista” entre aspas: Nabuco seria o correspondente simbólico do pensamento socialista, “conservador” seria Honório Hermeto Carneiro de Leão, marquês do Paraná, e por aí ia. A certa altura, um dos membros da banca examinadora perguntou a ela: “Mas será que havia um pensamento conservador, ou era apenas o atraso?” A seguir, acrescentou: “A senhora acha que essa gente leu Burke?” Burke se opunha à Revolução Francesa, mas tinha um pensamento; aqui não leram Burke, não são seguidores do Burke, são apenas atrasados.
Aqui temos o que se chama até hoje de conservadorismo, mas é apenas o atraso. Isso não é conservadorismo; o conservadorismo tem uma filosofia, tem um pensamento diante do qual você pode tomar posição. Aqui, esse pensamento simplesmente não se formula. Ou melhor, são vozes isoladas as que formulam e não encontram apoio político.
Se você perguntar a qualquer político ou jornalista ou o que quer que seja, como ele se qualifica, ele em geral responderá que se qualifica como democrata ou social-democrata – agora, já nem se qualificam mais como de esquerda propriamente dita, porque essa também caiu… –. Aliás, essa esquerda também não tem uma filosofia: qual seria atualmente o pensamento de esquerda no Brasil? Há um vago progressismo democrático, mas não propondo mudança nas estruturas.
Em suma, acho que esse é um problema complicado: a falta de pensamento. As pessoas não procuram justificar por que têm tal ou qual posição. Têm uma posição, e às vezes pensam que são conservadores quando são atrasados; outras pensam que são progressistas e estão também equivocadas. Falta clareza no pensamento: você pode não concordar com o positivismo, mas a clareza é fundamental.

Como a sua formação acadêmica influenciou a sua atividade política? E também o contrário: como a sua atuação política influenciou a maneira de pensar e o seu trabalho acadêmico?
 Eu fui formado, digamos, classicamente. No tempo em que estudava na faculdade em São Paulo, e depois na Europa, o sociólogo lidava com as mudanças sociais, com as estruturas: como mudam as estruturas, haverá revolução ou não?, pensando-se sempre em termos macro, em termos de estrutura. É verdade que a sociedade e as classes eram uma coisa muito mais organizada, ao menos na Europa, e todo o movimento político se situava em função das classes.
Bem, esse mundo mudou muito, a sociedade hoje é muito mais fragmentada, muito mais dinâmica; as formas de ascensão social são inúmeras, as organizações políticas têm menos correlação com as estruturas de classe, porque as classes também estão mais móveis; e você tem uma sociedade de massas, de consumo. Na sociologia, a partir de certa altura passou a haver uma forte influência da escola americana, que se interessava mais pelos micro-processos do que pelos macro. Como nunca deixei de estudar sociologia ao longo desses sessenta anos, fui acompanhando essas evoluções; mas, de qualquer maneira, a minha formação, não só em sociologia, mas também em economia, história, um pouco de antropologia, sempre foi voltada para entender as grandes mudanças estruturais, e isso ajudou.
Mas há um outro lado que me ajudou mais: fui formado como sociólogo de campo. Os meus primeiros trabalhos foram sobre negros e as minhas primeiras pesquisas foram sobre religião, em concreto a religião negra, porque o Roger Bastide, de quem eu era aluno e depois fui assistente, interessava-se por Candomblé. A primeira pesquisa que fiz – aliás, foi com a Ruth [Cardoso, falecida em 2008] –, foi sobre Umbanda aqui em São Paulo e em Araraquara. Depois, com o Florestan Fernandes e o Roger Bastide, fiz uma pesquisa sobre relação de raça e classe: fizemos um survey nos anos cinqüenta sobre o preconceito racial no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Escrevi a minha tese de doutoramento sobre relações raciais no Rio Grande do Sul – se bem que ainda fosse mais macro, mais sobre escravidão e capitalismo do que propriamente sobre as relações raciais. Ou seja, eu tinha treino em pesquisa de campo, em falar com as pessoas e ouvi-las, em entender como são, e em lidar com gente do povo.
Isso me ajudou muito, mais tarde, na minha passagem pela política. Os meus adversários sempre tentaram colocar-me contra a parede dizendo que pertenço à elite, além de coisas ridículas como dizer que sei melhor francês do que português, o que não é nem um pouco verdade. Primeiro, economicamente nunca pertenci à elite: meu pai era militar e advogado, classe média. Segundo, a minha formação intelectual foi de elite, obviamente, mas o meu treinamento foi de lidar com a população. Várias vezes ouvi dizer que: “Ah, ele não é capaz de lidar com a população”, ou anedotas de que teria dito isso ou aquilo num discurso, como se eu fosse pedante; quando não é verdade, nunca fui. Sempre me foi muito fácil falar com as pessoas, e sempre me dei bem com elas. Em suma, esse lado de sociólogo de campo ajudou-me bastante na política.
Meu pai foi deputado federal; curiosamente, era militar e advogado de formação. Participou da revolução de 22 e da de 24, e chegou a ser preso por causa delas; e uma coisa que me marcou muito – até já o escrevi – foi o que me dizia: “Você tem de continuar conversando até com o carcereiro”. Ele e o irmão estavam presos na fortaleza de Lajes, uma pedra lá no meio do mar, e o carcereiro passava informações de um para o outro porque meu pai conversava com ele. E também me ajudou muito a formação do meu pai em geral, que era de natureza bem diferente da minha. Quer dizer, é preciso conversar, é preciso ouvir.
Se você dissesse ao Ulysses Guimarães, outra pessoa que eu admirava muito: “Estive conversando com o Guilherme”, ele respondia: “Quanto tempo?” Costumava dizer que conversa rápida não vale; em política, é preciso conversar muito, é preciso ruminar. De fato é assim: conversa política é conversa mole, é jogar conversa fora até que haja um breakthrough. Parece que tudo é impossível de conseguir, mas de repente se consegue um resultado.
Por outro lado, a minha formação, como a de qualquer acadêmico, tem um aspecto que dificulta isso. Você é treinado para lidar objetivamente com os fatos e dizer a verdade, e quando descobre algo logo coloca o seu nome em baixo e diz: “Fui eu que inventei isto”. Na política, não. Você não tem que dizer que fez; o outro tem de pensar que é ele quem está fazendo, desde que faça o que você deseja. O jogo é de outra natureza, e você não deve ter pressa para pôr o seu nome em baixo do que está ocorrendo. Aí vale a pena lembrar o que diz o Weber, de quem já falamos: diz ele que não se pode mentir, mas se pode omitir a fim de chegar aos objetivos.
Também diria que a formação em humanidades ajuda muito na política, sobretudo a formação em história…

A famosa frase do Santayana: “Quem não conhece história está condenado a repeti-la”…
 Exatamente. Ou então, imagina-se que se está inaugurando o que já está devassado há muito tempo. Isso me ajudou bastante. Mas também traz dúvidas, muito mais que o político comum costuma ter.
Essas dúvidas são produtivas, mas, algumas vezes, tornam você muito menos assertivo. Lembro-me de que os meus companheiros políticos, o Mário Covas por exemplo, ficavam loucos no começo, porque eu dizia o que realmente achava aos repórteres que vinham perguntar sobre as pesquisas eleitorais, quando o político tem de dizer: “Eu vou ganhar, eu vou ganhar”.
Você também me perguntou como a política influenciou a minha formação. Sempre me interessei muito, como sociólogo, pelo que é novo, discrepante, emergente. Não tenho paciência com o recorrente, com o que se repete: gosto de ver o que está surgindo. E a política tem muito disso: é sempre o imprevisto. O bonito da política é que não tem regras. A toda hora surge uma coisa nova e você tem de se haver com ela. Isso tem vantagens e desvantagens, porque ninguém gosta do novo, as pessoas gostam do que repete, do que já conhecem; reforma, para a maioria, é conversa fiada, pois ninguém gosta de reforma nenhuma, gosta é de manter tudo como está. Em todo o caso, penso que a política me deu uma motivação maior ainda, mais interesses. Acho que esse sentido da política como algo que irrompe de repente  fortaleceu o meu lado sociológico de procurar ver o que vai surgir; espero que me tenha dado uma maior acuidade para ver o que é novo.

Toda figura pública desempenha um papel, e esse papel nunca condiz exatamente com a pessoa que de fato se é. Como o senhor lidou com isso?
No começo foi um pouco difícil, mas depois passei a lidar bem. Você lê uma porção de coisas no jornal que lhe são atribuídas, mas aquilo não tem nada a ver com o que você quer, com o que deseja ou o que pensa, ou então vê críticas enormes àquilo que nunca disse e nunca pensou, etc. Diante disso, ou toma distância ou sofre. Muitos sofrem; eu sempre tomei distância.
Também não gosto de intrigas; se alguém vem me contar: “Fulano falou mal de você, disse que é tal coisa”, pergunto-lhe: “Mas em que circunstâncias?” Nunca tomei ao pé da letra essas coisas. Da mesma forma, quando saía uma crítica muito violenta, simplesmente não a lia, para me proteger como pessoa. Às vezes, lia aquilo mais tarde, passado o tempo, para poder manter uma posição de equilíbrio.
Para você poder exercer uma função pública importante, precisa ganhar essa capacidade de se distanciar. Não se pode meter no olho do furacão; quem tem vocação para ver uma casca de banana e já sair correndo para escorregar nela está perdido. É preciso saber navegar. Foi difícil no começo, mas depois o couro fica duro…

O fato de ser uma figura pública também cria vários folclores ao seu redor. O senhor dá uma boa resposta à fama de vaidoso, por exemplo, no seu livro de memórias: “Pelo menos, tenho a pretensão de ser mais inteligente do que vaidoso”. Ou seja, também é possível usar esse folclore em seu favor. Além de manter o senso de humor…
 É, isso nunca perdi. Às vezes, custa caro: de vez em quando, sou muito irônico, e ironia na política é algo complicado porque as pessoas não entendem. Dá maus resultados. O intelectual normalmente é mais irônico, tem um subtexto que não se pode imaginar que todos percebam.
Amolaram-me a vida inteira com essa história de ser “muito vaidoso”. As pessoas pensam que eu tenho vaidade política, ou então pessoal, física, de roupa; mas essa, nunca tive. E também não tenho vaidade política, pois arrogante não sou. A única vaidade que tenho é intelectual: gosto de defender as coisas em que acredito. Se isso é vaidade, essa eu tenho, e desde criança; lembro-me de tremendos debates com primos meus na casa de meus pais. Eu gostava de ganhar essas discussões. Aliás, nunca vi alguém fazer uma crítica nesse sentido: aí, sim, ele poderia me apanhar, pois essa é a vaidade do intelectual, que gosta de se afirmar como tal. Sempre desconsiderei o resto, não tomo ao pé da letra essas afirmações; muitos também dizem que sou vaidoso como se isso fosse sinônimo de bobo. Paciência, problema de quem acha isso.

Quais são os seus modelos? Os heróis no sentido clássico?
 Vamos pensar nos contemporâneos com os quais convivi.
Há uma pessoa que é fora de série, mas que não está propriamente dentro dos moldes normais de um grande político: é o Nelson Mandela. Pertenço até hoje a um grupo que ele criou, chamado The Elders. O Mandela é uma pessoa curiosa; estive várias vezes com ele, e o que me impressiona não é tanto o que diz nem o que faz, mas o que simboliza. Ele tem uma aura. Alguns a têm, outros não; eu não posso aspirar a tê-la. O Mandela mostra que há um lado moral na política, que é do comportamento, da virtude – real ou atribuída –, e isso pesa. A sua presença é mágica.
As pessoas com quem tive contato, e que ainda estão vivas, são até bastante diversas umas das outras. Outro que me impressionou muito foi o Helmut Kohl, conservador. Não por acaso fez o que fez na Europa. É curioso, porque aparentemente ele não tem sofisticação nenhuma: parece um camponês, é grandalhão, come muito, só fala alemão, é muito afirmativo. Mas ele tem o sentido da história. Depois que caiu em desgraça, certa vez em que fui à Alemanha telefonei para ele; e, no outro dia, fiquei sabendo que o convidaram para vir aqui debater, e ele respondeu que só debateria comigo porque fui o único presidente que ele conheceu que ligou para ele depois de cair.
Outro é o Bill Clinton. O Clinton tem um pouco dessa aura do Mandela, mas é prático, é realista; tem uma capacidade de sentir o ambiente e dominá-lo que é muito difícil de encontrar. Outro exemplo, mas que é o oposto disso, é o Putin. É um homem baixo, forte, nada simpático, mas você percebe que ali há comando. Enfim, não gosto desse estilo, prefiro o do Clinton, mas são pessoas que têm uma certa radiação.
Se pensarmos em termos históricos, é muito variável. De Roma antiga, há o imperador Adriano. Recentemente, tem aumentado a minha admiração por Franklin Roosevelt. Sob vários aspectos, ele era bastante discutível, por ser excessivamente pragmático; nos EUA, por exemplo, por ocasião das eleições, nunca se sabia se era candidato ou não, pois só se definia na última hora. Mas fiquei muito impressionado quando li a correspondência dele com Stalin; Stalin era rude, grosseiro, e Roosevelt tinha uma paciência infinita com ele. E por quê? Porque tinha um objetivo, que era fazer as Nações Unidas. Portanto, se por um lado era muito manobrista, por outro não era um político banal, tinha propósito. Roosevelt é uma pessoa inspiradora.
Churchill também é inspirador, mas Churchill era outra coisa. Há uma biografia admirável de Lord Jenkins sobre ele. Comparado com Roosevelt, era até mais realista, mas mais corajoso; era um homem para aquela época de guerra, um guerreiro. Durante a Guerra, Roosevelt teve de preparar os EUA; a sociedade era contra entrar na guerra, mas o presidente sabia que seria necessário fazê-lo, e foi fazendo a preparação com muito jeito, o que mostra que tinha paciência e perseverança. Em suma, tinha ideal, paciência e perseverança, qualidades de um grande político.

No diálogo platônico Fédon, momentos antes de tomar a cicuta, Sócrates diz: “os que praticam verdadeiramente a Filosofia, de fato se preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor revelam diante da idéia da morte”. Como o senhor lida com isso? As idéias são suficientes para lidar com a morte?
 Há sempre uma certa angústia, não é? Passei recentemente por um momento difícil, que foi a morte da Ruth. É curioso… Olhando agora, em retrospectiva, era óbvio que ela estava com um problema de saúde; no entanto, nunca aceitamos esse problema; tínhamos feito uma longa viagem à China, ela estava se preparando para ir a Europa outra vez, e não obstante era evidente que podia… Como qualquer um de nós, sem dúvida, mas no caso dela era mais visível, porque tinha aquele problema de saúde. Portanto, é curioso: mesmo sabendo de tudo, custamos a introjetar a possibilidade do fim.
Bem, isso vale para cada um de nós: você vive como se fosse eterno, sabendo que não é. Isso gera uma angústia filosófica e existencial. Não há solução: você vai morrer. E existe ainda um segundo problema: como você vai morrer. Eu tenho medo é do sofrimento; não tanto da morte, mas do sofrimento que leva a morte. Neste ponto até me consola o modo como a Ruth morreu: estava conversando com o Paulo Henrique [filho mais velho dos dois], disse “ai” e caiu. Mas isso é uma bênção. E não é o caso mais provável: para quem tem um coração bom, como é o meu, é pior… Sabe Deus… Ou seja, a questão é agônica e não tem solução. E que idéia resolve isso? Nenhuma! Você sabe muito bem que é finito, e no entanto vive como se fosse eterno.
Por outro lado, pensando bem, eu que vou fazer setenta e oito anos posso dizer: “Olha, ser eterno deve ser uma chatice!”, porque as coisas são penosas também. Por enquanto, não tenho nenhuma restrição do ponto de vista físico. Mas imagino… Por exemplo, viajo muito e gosto de andar sozinho; não levo seguranças, às vezes apenas algum assessor; agora mesmo, fiquei sozinho em Yale uns três ou quatro dias. Mas começo a sentir um certo temor de estar sozinho que nunca tive antes. Porque você tem de ser realista: embora fisicamente não tenha nada, até agora, que me preocupe diretamente, o fantasma do tempo começa a pesar. Em todo o caso, não fico dando voltas a essa idéia, porque, senão, também não faço mais nada.

Como o falecimento da D. Ruth o influenciou, não do ponto de vista sentimental, que é algo muito pessoal, mas na maneira de olhar as coisas, olhar para o mundo e para a própria vida?
Você percebe com mais imediatez que as pessoas desaparecem. É curioso, porque desaparecem e não desaparecem. Não mudei de casa, mas por outro lado nunca mais voltei a Ibiúna, porque lá é muito dela. Nunca tive nenhum receio, até pelo contrário, de ficar em casa, de dormir na mesma cama em que sempre dormi – para mim, é uma maneira de continuidade. Enfim, você sabe que a pessoa morreu, que não existe mais; mas, quando você vai ficando mais velho, convive bastante com a memória. Por intermédio da Ruth, passei a lembrar mais dos outros que morreram, dos meus pais, meus avós – todo mundo já morreu. E meus amigos, porque vai havendo uma diminuição – e uma renovação, senão você não agüenta – do círculo de convivência.
Quando você vê que a morte está ali, que é um fato, e que você passa, eu até diria que isso dá uma certa relação de tranqüilidade… De alguma maneira, continua a haver um certo diálogo: as pessoas que morreram e que nos foram próximas, de alguma maneira continuam a nos influenciar. O que não há mais é o contrário: nós não podemos mais influenciá-las. É evidente que, quando morre uma pessoa muito próxima, você sente mais diretamente o peso dessa finitude, diante da qual não há o que fazer.

E qual é a sua relação com a religião? O senhor tem algum tipo de religiosidade?
 Meu pai era positivista de formação. O pai dele foi seminarista e um marechal do regime militar, além de republicano. Por alguma razão, não sei qual seja, a minha avó paterna, que nasceu no Rio por volta de 1875, não acreditava em Deus, ao passo que o marido dela, esse meu avô, sim; seja como for, ela não transmitiu aos filhos nenhuma formação religiosa. O meu pai não sabia rezar e os irmãos dele, também não. Essa minha avó sempre foi muito crítica, muito cética; ela me influenciou muito. Já a minha mãe estudou em um colégio de freiras, embora o pai dela fosse protestante. Ou seja, era uma confusão: a minha mãe tinha uma religião misturada, vaga.
A certa altura, eu, que nunca tinha estudado em colégio religioso – do curso primário ao ginásio, estudei num colégio chamado Perdizes e no Colégio São Paulo, que não existem mais –, fiquei muito católico. Por minha conta, não por conta dos meus pais; o meu pai era tolerante, não era religioso mas era muito aberto, e a minha mãe tinha essa religião confusa, basicamente católica também, mas confusa. Fiz a primeira comunhão… bem, batismo e crisma, por tradição, sempre se tinha; andava com escapulário e ficava muito nervoso porque a minha irmã era menos católica do que eu. Na hora de dormir, eu queria rezar um rosário, e a minha irmã apenas um terço, e eu ficava desesperado porque ela não rezava muito! Os meus pais não se tinham casado no religioso, casaram-se por minha causa, aqui nas Perdizes, na igreja de São Geraldo. Lembro-me até hoje, o padre chamava-se Deusdedit.
Ou seja, tive uma fase bastante religiosa, católica. A Ruth era de formação católica, estudou no Des Oiseaux. Quando a conheci, ela estava saindo de lá. Eu, a essa altura já não era, mas ia à missa com ela. Depois fui por outros caminhos e fiquei sem esse tipo de coisa, mas até hoje gosto de ir à missa. Quando posso, gosto de assistir mesmo pela televisão, e também quando viajo, vou à Europa, gosto de ir; lembro-me até, certa vez em Barcelona, de uma missa da qual não entendi grande coisa, pois era em catalão. Sobrou alguma coisa de respeito ao transcendental nesse sentido; senão, não haveria por quê.
Racionalmente, não poderia dizer nada. Por outro lado, como dizer, há o mistério, há coisas no mundo que você não explica. Não se pode ter a arrogância de achar que se sabe tudo. Isso de que estávamos falando, a morte, o que é? Qual o objetivo do universo? A vida? Diante de tudo isso, temos de ter certa humildade. Houve épocas – quando eu era mais jovem, ou no fim da adolescência, ao entrar na faculdade – em que eu era bastante adepto da explicação materialista. Hoje sou, digamos, mais cético para com as explicações objetivistas. Não adiro a uma explicação transcendente, mas abro  espaço para perguntar-me como é possível explicar uma porção de coisas. Tenho mais humildade diante dessas questões.
No fundo, a minha formação é católica. Não tive outra. E até hoje essa coisa fica, deixa um substrato. Certa vez, quando eu era presidente, o D. Eugênio, que é um homem de quem gosto muito (como também do D. Paulo), foi ver-me e me trouxe um crucifixo. Disse: “Olha, este crucifixo foi abençoado pelo Santo Padre. Você não precisa rezar, não precisa nem guardá-lo…”. Bem, enquanto estava na presidência nunca mais tirei da minha cabeceira esse crucifixo que o D. Eugenio me deu. Por respeito? Certamente, mas não só. Há algo mais… Sabe Deus. Ou seja, não sou intolerante. Meu pai não tinha noção dessas coisas, não sabia rezar, mas era tolerante. Penso que tem de haver um espaço para isso… Sabe Deus…
 Algumas perguntas mais simples e diretas: o senhor gosta de literatura?
Quando eu estava na adolescência, entrei na faculdade de Filosofia, mas não era o que eu queria; na verdade, queria fazer literatura. Naquela época, tínhamos uma revista chamada Revista dos Novíssimos. Os integrantes eram o Boris Fausto, pai do Sérgio Fausto que trabalha comigo aqui, os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, o Décio Pignatari e eu. A gente passava o tempo lendo. Eu tinha a estupidez de imaginar que poderia fazer poesia, e escrevi alguma coisa de que me envergonho até hoje.
 Esses poemas existem ainda?
 Existem, já até foram reproduzidos para constranger a minha vaidade…
Eu fui parar na Filosofia porque, quando mais jovem ainda, fui certa vez a uma estação de águas, em Lindoya, com dois amigos meus. Lá havia um senhor que ficava na varanda do hotel, lendo, e eu até sabia quem era: chamava-se Nuno Fidelino Figueiredo, um professor de literatura portuguesa exilado de Portugal. Ele percebeu que eu procurava ver o que ele estava lendo e não deixava. Até que um dia me chamou, perguntou: “Você está curioso?”, e me mostrou. Começamos a conversar e, para a minha decepção, ele não conhecia nenhum dos poetas de que eu gostava, que eram da geração de 1940 aqui de São Paulo, enquanto ele lidava com os clássicos. Mas disse-me: “Você me procura lá em São Paulo”. De fato fui procurá-lo, aqui na Rua São Luís, onde era o departamento de Literatura, e ele acrescentou: “Vai para as ciências sociais”.
Eu tinha também um professor de geografia, chamado Roque, que também falava muito dos franceses; dava geografia humana. Inscrevi-me na faculdade de Filosofia por inspiração dele, que dizia “Você está enganado, não vai para Direito,vai para outra área”. Porque, no fundo, eu tinha forte motivação socialista, embora na verdade não soubesse bem o que era aquilo – tinha dezesseis, dezessete anos. Nessa época, eu lia muito; então admirávamos muito o André Gide; os americanos – Faulkner, As vinhas da ira, esse tipo de literatura –. Mas lia também todos os brasileiros da época, que eram os nordestinos – era a descoberta do Nordeste. E poesia: Drummond era maravilha, Cecília Meireles… E também os russos.
Nunca deixei de fazê-lo. Até hoje, leio bastante; fiquei encantado com Mia Couto, que não conhecia e li recentemente. Há um húngaro que acho fantástico, Sandor Márai, que tem um livro sobre Canudos; ele deve ter lido Euclides da Cunha, e escreveu uma novela que é fantástica. E esse Miltom Hatoum, que é um brasileiro, também gosto dele. Enfim, não tenho mais o tempo de que gostaria, mas sempre que possível estou lendo.
 E música, gosta muito de música também? Popular ou erudita?
 Não conheço bem música, apenas “engano”. Mas gosto; estou na fundação OSESP, e sempre que dá assisto aos concertos. Lá em casa, todos nós… Naquela época, todo mundo aprendia um pouco de música no colégio, e lá em casa todo mundo aprendeu a tocar piano. Eu fui aquele que nunca aprendeu; em todo o caso, aprendi, mas não tenho dotes para isso. Minha irmã toca até hoje, e toca música clássica; meu irmão tocava, meu pai tocava, minha mãe também. Sempre gostei de ópera, a tal ponto que, coisa estranha, quando menino eu ia à ópera.
Mas também gosto de música popular. Há pouco eu estava em Yale, e o Masterdo College, chamado Robert Thompson, trouxe de Londres uns bailarinos de música afro-brasileira, afro-latinoamericana, em homenagem a mim. Esse Thompson estava entusiasmado porque lera uma entrevista que eu havia dado a um certo Kaplan, um maestro americano, quando lancei o meu livro The Acidental President of Brazil. Era uma entrevista de uma hora, que misturava música com o tema central; e esse professor que, ele sim, entende de música, viu uns palpites vagos que eu dera ao Kaplan e achou que eu sabia muito… Por isso trouxe os músicos de Londres.
Mas, para ser sincero, gosto mais de pintura…
 Quais os seus artistas preferidos?
 Vi recentemente uma coisa fantástica, a exposição da Mira Schendel e do Leon Ferrari lá em Nova York. Até aí eu vou. Mas, quando chegamos às instalações… Há pouco, vi em Londres o Oiticica estava fazendo um sucesso absoluto. Ao lado, estava uma mostra do Rothko, do qual gosto muito. O Oiticica é importante, fez coisas importantes, mas não me toca muito o que faz.
Gosto bastante dos pintores americanos, daquela solidão americana…
 Hopper, por exemplo…. Os quadros do Hopper me lembram muito La Derelitta do Boticelli. Há uma melancolia, mas é uma melancolia cheia de significado…
 É. Hopper tem aquela solidão… uma certa tristeza. Aqui no Brasil, na verdade, gosto é de coisa mais antiga. Não gosto tanto do Portinari, mas sim do Guignard, alguma coisa do Di Cavalcanti, acho que o Pancetti também. Conheci bem o Bonadei, tenho até hoje uns quadros que ele me deu. A Tarsila tem coisas sensacionais; é uma pena que esteja lá em Buenos Aires. Até esse período, o dos modernistas, entendo e gosto, e consigo chegar até alguma coisa mais recente; mas quando chega nessa coisa mais…. Os construtivistas russos, ainda os acho fantásticos. E acabei de ver agora, lá em Nova York, na New Gallery, uma exposição dos expressionistas alemães, admirável; é realmente uma escola especial. Entre os mais antigos, gosto sobretudo dos pré-renascentistas: Fra Angelico, Giotto… Da escola de Flandres, Van Eyck… É, tudo isso é fantástico.
 Guilherme Malzoni Rabello é engenheiro naval pela USP, doutourando em Neurociência pela Unifesp e presidente do IFE.

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