quarta-feira, 21 de abril de 2010

90) Murilograma a João Cabral de Melo Neto.

1

Comigo e contigo o Brasil.
Comigo e contigo a Espanha.

Entre mim e ti a caatinga.
Entre mim e ti a montanha.

Comigo e contigo Velázquez,
Graciliano, o moriles.

Entre mim e ti o barroco,
A cruz, Antonio Gaudí.

Comigo e contigo o Andalu,
Flamenco, Écija, los toros.

*


Entre mim e ti o símbolo,
Entre mim e ti o "pattern",

A estrovenga, a sondareza,
O oxímoron, o anacoluto,

O mitologema, o eucológio,
O compasso, o eléctron-volt?

*


Comigo e contigo o antifascio,
Comigo e contigo a Gestalt.

Comigo e contigo a antibomba,
A flor azulbranca da paz

Nascida de fértil convívio
& ritmo alternado recíproco.

2


Sim: não é fácil chamar-se
João Cabral de Melo Neto.
Força é ser engenheiro
Mesmo sem curso & diploma,
Pernambucano espanhol
Vendo a vida sem dissímulo;

Construir linguagem enxuta
Mantendo-a na precisão,
Articular a poesia
Em densa forma de quatro,
Em ritmos de ordem serial;
Aderir ao próprio texto
Com o corpo, escrever com o
Corpo;
Exato que nem uma faca.

Força é abolir o abstrato,
Encarnar poesia física,
Apreender coisa real,
Planificar o finito;

Conhecer o vivo do homem
Até o mais fundo do osso,
Desde o nove de um Mondrian
Até o zero dum cassaco
Espremido pelos homens
Na sua negra engrenagem;
Radiografar a miséria
Consentida, estimulada
Pelos donos da direita,
Levantar-se contra a fome
Sem retórica gestual;
Descobrir o ovo, a raiz,
O núcleo, o germe do objeto;

Ter linguagem contundente,
"A palo seco"; e portar
– Sem nenhum superlativo –
Olho e mão superlativos
Com o suplente microscópio.

Murilo Mendes
In:"Convergência"


Roma, 1964

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