domingo, 29 de agosto de 2010

202) Marx e as Eleições Brasileiras, por Paulo Roberto de Almeida.

Mercado político e mercados econômicos




Marx e as eleições brasileiras

Paulo Roberto de Almeida

Uma tendência bem conhecida da ciência política consiste em fazer uma análise econômica dos processos eleitorais e dos sistemas políticos. Embora se possa dizer que metodologias e problemas podem ser aproximados, para fins de análise e de interpretação, o fato é que existem diversos elementos diferenciadores que fazem com que o mercado político não seja o exato equivalente do mercado de bens e serviços correntes. Este último é, em princípio, caracterizado pela atomização dos ofertantes e pela livre disposição de seus recursos da parte dos demandantes, ao passo que o primeiro se caracteriza por tendências bem claras ao monopólio e à exclusão. 
Independentemente, porém, do grande número de variáveis que concorrem para diferenciar um do outro, pode-se dizer que mercado político não é igual ao mercado de bens e serviços correntes por um motivo muito simples: embora o Estado possa interferir tanto num quanto noutro – por meio de regras quanto ao seu funcionamento, ou por meio de impostos sobre as transações, por exemplo –, nos mercados puramente econômicos, os compradores dispõem (pelo menos nos sistemas capitalistas e razoavelmente democráticos) de liberdade completa para determinar quantidades, tipos e formatos das prestações dos bens e serviços aos quais pretendem alocar seus ativos financeiros. O consumidor é, em princípio, soberano nas suas escolhas e atua com base nas informações disponibilizadas pelos produtores, que teoricamente concorrem entre si pelas preferências do primeiro. Economistas liberais tendem a considerar a economia dos livres mercados como sendo uma espécie de “ditadura do consumidor”, o que se aproxima apenas parcialmente da realidade (já que cartéis, monopólios, coalizões e colusões de produtores deformam as condições de concorrência, em detrimento dos consumidores, obviamente). Na prática, todos os mercados são imperfeitos.
Nos mercados políticos, ao contrário dos de natureza econômica (ou com bem maior ênfase do que nestes), o Estado é, não apenas um interlocutor incontornável e um regulador necessário, como atua, também, como agente de seus próprios interesses, obviamente não enquanto Estado, mas enquanto governo. O Estado é, em grande medida, uma figura abstrata, virtual ou, em certo sentido, quase ficcional; ele existe, obviamente pelas suas instituições e pelo conjunto de leis e normas que regulam a ação de seus agentes permanentes, mas se expressa de modo muito mais afirmado enquanto ator de primeiro plano em suas roupagens de governo e de coalizão de forças a serviço dos partidos e dos grupos de interesse representados e ocupando suas instituições dotadas de vontade política. 
Nessa condição, o Estado deixa de ser abstrato para passar a representar interesses políticos, econômicos e projetos tangíveis e intangíveis vinculados aos líderes políticos que ocupam temporariamente suas alavancas de comando. Isto é básico e elementar, conhecido de qualquer estudante de graduação que tenha lido seus manuais de ciência política ou debruçado-se sobre a obra de Max Weber. Aliás, até mesmo Marx, nas páginas muito rudimentares do Manifesto Comunista, ou naquelas melhor elaboradas do 18 Brumário, já tinha detectado essa captura do Estado por forças políticas ou por personagens excepcionais – nem todos representando as “elites” tradicionais – que se movimentam no grande palco das lutas pelo poder. 


Uma interpretação marxista dos embates eleitorais no Brasil de 2010

Justamente, se Marx fosse chamado a reescrever suas obras políticas mais conhecidas – como os já citados Manifesto e 18 Brumário, acrescidos do Luta de Classes na França – adaptando-as ao cenário do Brasil atual, eis o que ele talvez redigisse, como síntese da campanha eleitoral em curso e da própria conjuntura. 
Se considerarmos o estado atual da luta de classes no Brasil, depois de anos e anos de afirmação de uma liderança cesarista e carismática, o que se pode dizer é que todas as classes se renderam ao Bonaparte do momento. Não ocorreu, para todos os efeitos, qualquer golpe na trajetória política recente do país, algo inesperado como um raio caído de um céu azul. Não; tudo foi o resultado racional-legal da lenta ascensão de classes pouco trabalhadoras ao pináculo do poder, o produto final da lenta acumulação de forças pelo partido da reforma conservadora. O final lógico desse teatro de lutas contra os burgueses liberais nos últimos anos já era o esperado: o manto imperial caiu, finalmente, nos ombros do pequeno Bonaparte, sem sequer algum gesto dramático, menos ainda com qualquer sinal de tragédia. Foi, assim, um triunfo de comédia.
Todas as classes, com exceção de uma fração extremamente reduzida de ideólogos da pequena burguesia libertária, se renderam ao líder aclamado; a minoria que o ataca não tem qualquer força social atrás de si para contestar o seu domínio completo sobre a sociedade. A máquina burocrático-sindical já estava ganha desde o início, pois foi dela mesmo que o novo Cesar emergiu para uma ascensão lenta, mas irresistível. Os movimentos desorganizados do lumpesinato e do proletariado não sindicalizado foram os que convergiram em segundo lugar, pois eles encontraram no Tesouro da República a justa compensação pela escolha judiciosa que fizeram. Não foi preciso repetir a história, sequer como farsa, no caso da grande burguesia industrial e dos representantes da alta finança: eles já tinham sido convencidos, desde antes da ascensão do imperador, de que seus interesses de classe seriam regiamente compensados, como de fato o foram, pela fidelidade demonstrada ao novo esquema de poder. Todos eles foram colocados na mesma categoria de apoiadores, meras figuras decorativas na urna de votos do novo Cesar, como se fossem simples unidades indistintas de um grande saco de batatas. 
O fato é que até mesmo o antigo partido da reforma conservadora foi parar nesse saco de batatas, e virou o partido da Ordem, submisso como todos os outros ao poder do chefe supremo. As bases de seu poder são relativamente transparentes, pois basta seguir o itinerário do dinheiro que escorre dos cofres públicos – isto é, dos bolsos da burguesia e da pequena burguesia, dos grandes proprietários fundiários, dos caixas das empresas da burguesia industrial, e até mesmo dos parcos tostões do proletariado e seus aliados menores. Temos, em primeiro lugar, a plutocracia financeira, aquela que sempre se opôs ao partido da reforma, quando este era desestabilizador, mas que logo se acomodou, ao constatar que o grande líder propunha, na verdade, uma coalizão diferente para manter o mesmo esquema de poder real; ela foi contemplada, como sempre, com os juros da dívida pública, sem precisar fazer qualquer esforço no mercado de capitais ou na busca de clientes para seus empréstimos extorsivos. A grande burguesia das fábricas e dos negócios comerciais também soube encontrar o seu nicho no novo esquema de poder: um mercantilismo renascido com um Estado ainda mais forte, capaz de dispensar empréstimos facilitados, isenções fiscais, tarifas protetoras e toda sorte de prebendas e subsídios que tinham uma existência mais modesta na antiga República neoliberal. 
Vem em seguida a nova aristocracia sindical, que já não era operária havia anos, provavelmente a décadas; sua fração burocrática converteu-se em parte integrante da nomenklatura estatal, a nova classe privilegiada, que alguém já chamou de “burguesia do capital alheio”. A maior parte, porém, continuou nas corporações sindicais, agora locupletando-se de fundos públicos, que lhe são repassados sem qualquer controle. Junto com os militantes do antigo partido da reforma, eles constituem os elos mais relevantes do novo peronismo em construção, uma nova força política que é puro movimento, sem qualquer doutrina ou construção teórica mais elaborada. Os aliados da academia, que poderiam fornecer uma base intelectual para o partido da reforma, os universitários gramscianos, estes parecem singularmente estéreis na produção de novas idéias, pois ficam repetindo velhos slogans do socialismo do século 19, sem qualquer originalidade ou refinamento. São tão atrasados, e alienados, esses acadêmicos repetitivos, que terminaram por ver num coronel golpista, de notórias tendências fascistas, um líder progressista do novo socialismo; o êmulo de Mussolini pretende que o seu socialismo seja do século 21, quando este nada mais constitui senão uma confusão mental e uma construção estatal digna do que havia de pior no sovietismo esclerosado. 
Outros componentes do mesmo saco de batatas são os funcionários públicos, alguns verdadeiros mandarins, a maioria simples beneficiários da prodigalidade estatal, que, na média, recebem o dobro do que ganhariam na iniciativa privada, para níveis de produtividade que são, na média, menos da metade daquelas do setor privado. Figuram ainda no saco, finalmente, os recipientes do maior programa social do mundo, que vem a ser, também, um grande curral eleitoral: o lumpesinato, de forma geral, e os vários lumpens urbanos, em particular, com alguns pequeno-burgueses espertalhões aqui e ali. Não se deve esquecer, tampouco, tubérculos igualmente vistosos, como os beneficiários de bolsas para diversas categoriais sociais ou as cotas para os representantes do Apartheid em formação, os promotores do novo racismo oficial. 
Ficam de fora do saco de batatas apenas e tão somente 3 ou 4% do eleitorado, representado politicamente por figuras teimosas, que recusam inexplicavelmente o mito do demiurgo e que pretendem continuar o combate de retaguarda, sem qualquer esperança de reverter o curso do processo político no futuro previsível. Esses novos mencheviques intelectuais também fazem sua própria história, mesmo se eles ainda não têm consciência disso: eles não podem, contudo, esperar fazer sua revolução a partir de um passado já enterrado; apenas em direção ao futuro, embora o caminho seja longo e os resultados muito incertos.
O que parece certo é que a mistura de pequeno Napoleão com um Perón improvisado também terá um dia sua estátua derrubada do alto da coluna Vendôme, não tanto como resultado de uma nova luta de foices e martelos, mas como o produto de uma lenta evolução educacional. Esta é a revolução mais difícil de ser provocada, mas constitui, legitimamente, o único processo revolucionário de que o Brasil necessita.

Zhengzhou, 24.08.2010; Shanghai, 26.08.2010

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A frase bonapartista: 


'Ainda tenho caneta para fazer miséria neste País', diz Lula

201) Um sítio dedicado a Alexis de Tocqueville

Alexis jeune homme
Alexis jeune homme ; Anonyme, coll. privée
© AD Manche / Poirier
Deveria estar colocando aqui muito mais material sobre as presentes eleições. No entanto, em função da rotina que me puxa para outras tarefas, não o tenho feito. Logo devo preparar algum material que preencha um pouco essa coluna vaga neste blog. Por ora, venho divulgar um sítio do Ministério da Cultura e da Comunicação francês cujo conteúdo me agradou bastante.  Em tempos de eleições, é sempre bom tornar àquele que lançou um arguto olhar sobre a democracia. Com vocês, Alexis de Tocqueville.

Vinícius Portella

Porto Alegre,
29 0007 ago 2010.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

200) Um Estranho no Ninho ou o Ovo do Cuco Totalitário.

Em matéria de democracia, certos fundamentos devem ser muito bem guarnecidos sob pena de o edifício inteiro vir abaixo. Certas instituições de Estado têm de ficar a salvo da infiltração e manipulação partidárias - principalmente quando enfeixam grande poder - sob pena de a liberdade de uma nação inteira estar ameaçada. Certas iniciativas são como o ovo que o cuco deixa no ninho de outras aves - um estranho no ninho que, nascido, se põe a tocar para fora, no chão, os demais ovos. Abaixo, um ataque gravíssimo à nação, à república, à democracia.

Vinícius Portella

Porto Alegre,
26 0141 ago 2010.


Brasil: os subterraneos do Estado policialesco e ilegal



Estamos falando não de simples golpes de alguns espertos, mas do próprio ovo da serpente totalitária, o Estado policialesco, como existia na RDA, com a Stasi, e como existe em Cuba, com o aparelho de segurança. A corja a serviço de uma causa política coloca o Estado como mero provedor de informações estratégicas para seu projeto de poder. 

Não compreendo como as pessoas não se sentem pessoalmente atingidas por esse tipo de crime. É isto que nos espera...

Paulo Roberto de Almeida



Receita vasculhou sigilos de mais 3 pessoas ligadas a Serra e FHC

Leandro Colon e Rui Nogueira

O Estado de S.Paulo, 25 de agosto de 2010


Investigação revela que Luiz Carlos Mendonça de Barros, Ricardo Sérgio de Oliveira e Gregório Marin Preciado também tiveram sigilos quebrados

BRASÍLIA - Investigação interna da Receita Federal revela que acessos suspeitos aos sigilos fiscais de adversários do PT foram além do manuseio dos dados do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge. Os documentos mostram que, no mesmo dia, de um mesmo computador e em sequência, servidores do Fisco abriram os dados sigilosos de Eduardo Jorge e de mais três pessoas ligadas ao alto comando do PSDB. São elas: Luiz Carlos Mendonça de Barros, Ricardo Sérgio de Oliveira e Gregório Marin Preciado. 


O Estado teve acesso a informações do processo aberto pela Corregedoria da Receita para saber quem acessou e por que os dados de Eduardo Jorge foram abertos em terminais da delegacia da Receita Federal em Mauá (SP). Essas informações foram parar num dossiê que teria sido montado por integrantes do comitê de campanha da candidata à Presidência Dilma Rousseff (PT). A oposição acusa funcionários do governo de violarem os sigilos fiscais de tucanos para fabricar dossiês na campanha eleitoral.

Os dados da investigação revelam que as declarações de renda de Eduardo Jorge e dos outros três tucanos foram acessadas do mesmo computador, por uma única senha, entre 12h27 e 12h43 do dia 8 de outubro do ano passado. O terminal usado foi a da servidora Adeilda Ferreira Leão dos Santos. A senha era de Antonia Aparecida Rodrigues dos Santos Neves Silva. Às 12h27, foi aberta a declaração de renda de 2009 de Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações do governo de Fernando Henrique Cardoso. Três minutos depois, às 12h30, acessaram os dados do empresário Gregorio Marin Preciado, casado com uma prima de José Serra. Às 12h31, a declaração de Renda de Ricardo Sérgio foi aberta. Ele é ex-diretor do Banco do Brasil no governo FHC. Às 12h43m41s daquele mesmo dia, o mesmo terminal acessou a declaração de renda de 2009 de Eduardo Jorge. Quatorze segundos depois, os dados referentes a 2008 foram abertos por um servidor da Receita.


Os nomes dos tucanos foram destacados pela própria investigação da Receita Federal, como "contribuintes que despertaram interesse na apuração". O trabalho de apuração da Receita compreendeu os acessos ocorridos naquela delegacia entre 3 de agosto e 7 de dezembro de 2009. Em depoimento à corregedoria da Receita, as duas funcionárias negam envolvimento na abertura desses dados. Dona da senha usada, Antonia Aparecida alega que repassou o código a outras duas colegas e que não sabe quem fez essas consultas.  

terça-feira, 24 de agosto de 2010

199) A maior reforma alemã do pós-guerra se aproxima.

ALEMANHA | 24.08.2010

Forças Armadas alemãs estão diante da maior reforma do pós-guerra

 
Forças alemãs são terceiro maior contingente no Afeganistão
Forças alemãs são terceiro maior contingente no Afeganistão

Segundo planos do ministro alemão da Defesa, Karl-Theodor zu Guttenberg, a Bundeswehr ficará menor e mais eficiente. Serviço militar e civil obrigatórios deixarão de existir. Novo modelo deverá contar com voluntários.

 
A Bundeswehr está prestes a passar por sua maior reforma no pós-guerra. As mudanças nas Forças Armadas alemãs deverão não apenas reduzir seu orçamento, mas também provocar modificações estruturais que ainda são alvo de controvérsia no cenário político do país.
Segundo os planos revelados nesta segunda-feira (23/08) pelo ministro da Defesa, Karl-Theodor zu Guttenberg, as alterações previstas reduzirão em um terço o número de soldados, que cairá de 252 mil para entre 165 e 170 mil.
"As Forças Armadas ficarão menores, melhores e mais eficientes", argumentou Guttenberg, que acredita que a reforma as tornará mais modernas do que no modelo atual.
O ministro alemão de Finanças, Wolfgang Schäuble, pretende cortar 8,3 bilhões de euros dos gastos militares como parte do plano nacional de austeridade que visa economizar 80 bilhões nos próximos quatro anos.
O orçamento anual destinado ao setor de defesa na Alemanha é de 31,2 bilhões de euros, o quarto maior das forças da Otan. Os Estados Unidos, que lideram a lista da Otan, gastam 13 vezes mais que a Alemanha. Reino Unido e França ocupam o segundo e terceiro lugar respectivamente.
Serviço obrigatório
Ainda segundo os planos futuros, o serviço militar deixaria de ser obrigatório, medida que poderia começar a valer já a partir de meados de 2011. Em vez de recrutar os jovens, o serviço militar do país empregaria cerca de 7.500 voluntários. Esse ponto da reforma, no entanto, é alvo de críticas.
"O total de 7.500 voluntários por ano está longe de ser o bastante para se obter jovens satisfatoriamente qualificados", argumentou Rainer Arnold, especialista em política de defesa da bancada social-democrata no Parlamento alemão. Para ele, seriam necessários, no mínimo, entre 20 e 30 mil voluntários. 
A chanceler federal, Angela Merkel, afirmou não ser contra o fim do serviço militar obrigatório, mas não quis se declarar favorável a um determinado modelo.
Apesar de o alistamento militar perder seu caráter obrigatório, o ministro Guttenberg ressaltou que esse item não será excluído da Lei Fundamental. "Algumas pessoas podem dizer que sabem como o mundo será daqui a dez ou vinte anos. Eu não. Por isso, é muito importante que o alistamento fique na constituição."
Outra exclusão

Também a obrigatoriedade do serviço civil, que é hoje uma alternativa ao alistamento militar, será suspensa. Entretanto, a atividade representa um grande apoio ao trabalho de diversas instituições sociais no país. Por isso, também a ministra da Família, Kristina Schröder, planeja substituí-lo por um serviço nacional voluntário.
A ministra espera atrair cerca de 35 mil homens e mulheres por ano para o novo serviço voluntário. O trabalho nas instituições teria seis meses de duração, podendo chegar a 24 meses em casos excepcionais, com um salário de 500 euros mensais.
"Não tenho a ilusão de que conseguiremos substituir completamente o que temos agora", disse a ministra, defendendo a qualidade do atual modelo. No entanto, Schröder destacou que o novo projeto ofereceria as oportunidades do serviço civil também às mulheres.
Em 2009, cerca de 68 mil homens foram convocados ao serviço militar, e outros 90 mil optaram pelo serviço civil.
Até a queda do Muro de Berlim em 1989, a Alemanha evitou participação em conflitos armados, limitando a atuação dos soldados a serviços de ajuda humanitária.
Nas últimas décadas, entretanto, a Bundeswehr participou de missões na Somália, no Kosovo, no Congo e no Afeganistão, onde a Alemanha possui o terceiro maior contingente das forças internacionais.
NP/rts/dpa/afp
Revisão: Rodrigo Rimon

sábado, 21 de agosto de 2010

198) O Livro, a Memória e a Imaginação.

“Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu próprio corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.”
(Jorge Luis Borges)

197) Reforma Agrária: Querelas.

Abstenho-me de qualquer comentário, não querendo dizer que concorde ou não com tais palavras. Este texto fora há muito selecionado para publicação n'O Arqueiro Prudente, mas não o pude fazer. Todavia, é um tema importantíssimo a ser pensado sob diferentes pontos, evitando-se os lugares-comuns que nada ajudam a elucidar a situação e sua melhor solução. 

Vinícius Portella

Porto Alegre,
21 0605 ago 2010.
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Reforma Agraria: chamando as coisas pelos nomes (Katia Abreu)

O Brasil exibe, atualmente, uma completa inversão de valores, e a sociedade assiste, estupefata, a cenas explícitas de ilegalidades, sancionadas pelo governo.

O texto abaixo restabelece algumas verdades que precisam ser ditas.
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A esquerda não quer a reforma agrária

KÁTIA ABREU

O Estado de S.Paulo, 25 de maio de 2010

Nada obsta mais a reforma agrária no Brasil que a manipulação político-partidária que dela se faz. A estratégia criminosa de invasões de terras é a ponta de lança desse processo. Transforma o produtor rural em vilão e o invasor em vítima, numa espantosa inversão de valores. A entidade que tudo patrocina, o Movimento dos Sem-Terra (MST), inexiste juridicamente, o que impede reparações judiciais.

O governo, que deveria garantir a segurança dos contribuintes, faz vista grossa, emite declarações simpáticas aos invasores e chega ao requinte de produzir um decreto, o PNDH-3, em que os considera parte a ser ouvida antes de o invadido recorrer à Justiça para reclamar a reintegração de posse. Pior: financia os invasores, via ONGs constituídas com a única finalidade de gerir uma entidade abstrata, embora concreta em seu objetivo predatório. Acumulam-se aí ilícitos: além da invasão, há o ato irregular governamental, denunciado pelo ministro Gilmar Mendes, do STF, de financiar entidades que burlam a lei.

Quanto já foi gasto - sabe-se que são centenas de milhões de reais - a pretexto da reforma agrária, em dinheiro repassado a essas ONGs? E o que de concreto foi feito para realizá-la? Qual a produtividade dos assentamentos do MST? São perguntas sem resposta, que justificaram a instalação de uma CPI mista no Congresso Nacional, sistematicamente sabotada pela maioria governista.

Em vez de respondê-las, os agentes partidários, travestidos de funcionários públicos, empenham-se em difundir a infâmia de que a maioria dos produtores rurais ou é predadora do meio ambiente ou escravagista. A manipulação de causas contra as quais ninguém, na essência, se opõe é um dos truques de que se vale uma certa esquerda fundamentalista, adversária da livre-iniciativa, para manter como reféns os produtores rurais, difamando-os.

Nenhuma pessoa de bem - e a imensa maioria dos produtores rurais o é - é a favor do trabalho escravo ou da destruição do meio ambiente. Mas isso não significa que concorde com qualquer proposta que se apresente a pretexto de defender tais postulados. Não basta pôr na lei punições contra o "trabalho degradante". É preciso que se defina o que é e o que o configura concretamente, princípio elementar da técnica jurídica.

A lei não pode ser meramente adjetiva, o que a torna, por extensão, subjetiva, permitindo que seja aplicada conforme o critério pessoal do agente público. Foi esse o ponto que me fez, como deputada federal e depois como senadora, exigir emendas a uma proposta legislativa de punição por trabalho escravo. Não o defendo e o considero uma abjeção inominável. Quem o promove deve ser preso e submetido aos rigores da lei, sem exceção, sem complacência. Mas tão absurdo e repugnante quanto o trabalho escravo é manipulá-lo com fins ideológicos.

O que se quer é o fim da livre-iniciativa no meio rural, pela sabotagem ao agronegócio, hoje o segmento da economia que mais contribui para o superávit da balança comercial do País.

A fiscalização das propriedades rurais está regulada pela Norma Regulamentar n.º 31 do Ministério do Trabalho (MT), que tem 252 itens e desce a detalhes absurdos, como estabelecer a espessura do pé do beliche e do colchão.

Afirmei, em razão desses excessos, ser impossível cumpri-la em sua totalidade e que havia sido concebida exatamente com essa finalidade. Tanto bastou para que fosse acusada de defender o trabalho escravo, recusando-me a cumprir práticas elementares, como o fornecimento de água potável e condições básicas de higiene. Desonestidade intelectual pura.

A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que presido, tem sido bem mais eficaz que o Estado na fiscalização trabalhista nas propriedades rurais. Basta conferir os números: os grupos móveis de fiscalização do MT percorreram, em sete anos - de 2003 até hoje -, 1.800 fazendas. A CNA, em 90 dias, percorreu mil fazendas e já está promovendo o circuito de retorno, para averiguar as providências tomadas.

A CNA, com o objetivo de aprimorar o trabalho no meio rural, vai criar um selo social - uma espécie de ISO 9000 trabalhista - para qualificar as propriedades-modelo, qualificando também sua produção. Esse selo indicará não só zelo social, mas respeito ao meio ambiente e adoção de práticas produtivas adequadas. Não queremos responder às injúrias com injúrias, mas com demonstrações concretas de nosso empenho em contribuir para o desenvolvimento econômico e social do País.

É preciso que se saiba que 80% dos produtores rurais brasileiros são de pequeno e médio portes e não suportam economicamente esse tipo de sabotagem, que se insere no rol de crimes contra o patrimônio, de que as invasões de terras são a ponta de lança.

Em quase todos os casos, os enquadrados como escravagistas não são processados. E por um motivo simples: não o são. As autuações trabalhistas que apontam prática de trabalho escravo são insuficientes para levar o Ministério Público a oferecer denúncias pela prática de infrações criminais. O resultado é que, enquanto isso não ocorre, o produtor tachado de escravagista fica impedido de prosseguir em seu negócio e acaba falido ou tendo de abrir mão de sua propriedade. A agressão, como se vê, não é somente contra o grande proprietário, mas também contra a agricultura familiar, cuja defesa é o pretexto de que se valem os invasores e difamadores.

Diante disso tudo, não hesito em afirmar que se hoje o processo de reforma agrária não avança no País a responsabilidade é dessa esquerda fundamentalista, que manobra o MST, consome verbas milionárias do Estado e proclama a criminalização dos movimentos sociais. Não há criminalização: há crimes, com autoria explícita. O MST, braço rural do PT, não quer a reforma agrária, mas sim a tensão agrária, de preferência com cadáveres em seu caminho, de modo a dar substância emocional a um discurso retrógrado e decadente. Reforma agrária não é postulado ideológico, é imperativo do desenvolvimento sustentado. Por isso a CNA a apoia. Por isso o MST e a esquerda fundamentalista não a querem.

SENADORA (DEM-TO), É PRESIDENTE DA CNA
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2 COMENTÁRIOS:

Tiago disse... 

DR PRA, concordo plenamente que existem vários membros, pertencentes ao MST, que se valem do pretexto da reforma ágraria para invadirem terras.Acusando-as, dessa maneira, de serem improdutivas e aos seus donos de ferozes destruidores da natureza ou até mesmo escravagistas, algo que eu, particularmente, acho abominável, dado que a maioria dos agricultores são honestos. Não acho certo, noentanto, a generalização com que a questão é tratada, "demonizando", de uma forma geral, o MST.Neste, como em todos os outros lugares, inclusive entre os senadores, existem pessoas desonestas, que enxergam, através de uma instituição, uma maneira de se benefíciarem.A maioria, entretanto, destes militantes são descentes, que lutam por algo justo:A reforma agrária. As terras improdutivas, infelizmente, são uma realidade, não um mero fruto onírico da esquerda brasileira com o intuíto de se beneficiar.Sei que é clichê o que vou dizer, mas, nunca foi feito nada para se mudar a estrutura fundiária deste país, pelo contrário, sempre foi fervorosamente defendido os direitos aristocráticos.À começar por nossa mídia, que sempre quando tocado no assunto age de forma irrepressível e hostil com quem pense diferente.Tudo isso, fora o fato, o Brasil tem 80 por cento de seus produtores rurais de pequeno e médio porte, noentanto, com quantos por cento das terras ? Tenho certeza, que a taxa é muito menor que 80 por cento. A terra improdutiva existe, e a reforma agrária é uma necessidade, o que não justifica as falsas acusações e o usurpo ideológico feito por alguns membros do MST.Devemos aceitar, porém, que a maioria dos seus está ali por uma causa justa - o seu direito de trabalhar.

QUARTA-FEIRA, MAIO 26, 2010 12:50:00 AM 


Paulo R. de Almeida disse... 


Tiago, Acho que você não está vendo a realidade. O MST não é um movimento e sobretudo não é de "sem terras". Trata-se de um partido político neobolchevique que arregimenta o lumpenproletariado urbano e o lumpesinato rural para fins basicamente politicos. Agricultor está trabalhando, em suas próprias terras ou arrendando terras de outros para produzir e vender no mercado. O que o MST faz é arrancar dinheiro do governo e das ONGs, inclusive estrangeiros ingenuos, para promover o que ele pensa ser um processo revolucionário, de abolição da grande propriedade capitalista, do agronegócio exportador e, em última instância, do Estado burguês. O MST quer tanto a reforma agrária quanto eu quero chegar na Lua... Não existem terras improdutivas no sul e sudeste do país, talvez algum resqúicio no norte e nordeste, mas certamente não no centro-oeste, uma fronteira agrícola em constante expansão, movida justamente por verdadeiros agricultores, não gigolôs do dinheiro público que são os militantes do MST. Acho que você não tem idéia do que sejam "direitos aristocráticos". Você precisa visitar as fazendas brasileiras produtivas, para ver a realidade do campo brasileiro, que não é a que pinta o MST. Concentração de terras existe, como existe concentração em determinadas atividades urbanas: o mercado e as regulação da concorrência se encarrega de mudar as condições sempre. Paulo Roberto de Almeida

QUARTA-FEIRA, MAIO 26, 2010 6:52:00 AM

196) Biblioteca do Palácio de Escorial.

uem dera a mim - um rato de livrarias e bibliotecas - estar na Biblioteca do Palácio de Escorial...

Vinícius Portella

Porto Alegre,
21 0343 ago 2010.

Ficheiro:EscorialBiblioteca.jpg

195) Nas Origens da Crise Financeira, por José Alexandre Scheinkman.


Para os que ainda acreditam que foram os mercados financeiros que criaram, sponte sua, a crise financeira internacional, com origem nos EUA, caberia reler o que disse, ainda no ano final do governo George Bush, José Alexandre Scheinkman, um dos mais brilhantes economistas brasileiros, professor em Chicago e atualmente em Princeton.

Respostas de Scheickman a jornalista da revista Veja:

Os modelos de risco estavam errados?

O problema é que se criou no mercado financeiro uma atmosfera semelhante àquela que havia no mercado de arte em Nova York nos anos 50 e 60. Em seu livro A Palavra Pintada, Tom Wolfe conta que quem dissesse que a arte abstrata era ruim de imediato era considerado retrógrado, incapaz de compreender a beleza. Para parecer um entendido, você tinha de gostar de Jackson Pollock (pintor americano, 1912- 1956). Os modelos de avaliação de risco criaram uma mística semelhante no mercado financeiro. Se você dissesse não acreditar neles, ou desconfiar deles, as pessoas logo concluiriam que você não entendia nada do mercado. Isso fez nascer um excesso de confiança nos modelos de risco.

O problema, então, não foi a falta de regulamentação no mercado financeiro, que acabou permitindo que as instituições assumissem riscos enormes?

Faltou regulamentação também. As agências de classificação subavaliaram riscos importantes, e os bancos de investimento e comerciais, e mesmo outras empresas, como a AIG, uma seguradora que atua no mercado financeiro, assumiram excesso de risco.

Por que os mercados estavam tão desregulados?

Por ideologia. O presidente Bush e o próprio Alan Greenspan (que presidiu o Federal Reserve, o banco central americano, de 1987 a 2006) tinham uma atitude ideológica contra a regulamentação. Em 2004, a SEC (Securities and Exchange Commission, equivalente à CVM, Comissão de Valores Mobiliários) aceitou que os bancos de investimento adotassem alavancagens muito maiores. A partir do mesmo ano, o Federal Reserve também permitiu que os bancos comerciais excluíssem certos produtos de seus balanços. À atitude ideológica contra a regulamentação, o governo Bush aliou certa incompetência. A equipe econômica de Bush era fraca, com John Snow como secretário do Tesouro. Não concordo com tudo o que o atual secretário, Henry Paulson, está fazendo, mas ele é bem melhor que o antecessor.

194) Earl Conee & Theodore Sider: Dos Filósofos Acadêmicos e da Filosofia.


Earl Conee & Theodore Sider
Os filósofos académicos procuram ser tão racionais quanto possível nos seus textos. Criticam as ideias uns dos outros impiedosamente na procura da verdade. Isto dá lugar a controvérsias em vez de apaziguadoras certezas — e algumas pessoas não gostam disto. O que é também uma pena. As controvérsias são divertidas e esclarecedoras. A Filosofia é uma busca intelectual, com regras rigorosas concebidas para nos ajudar a compreender o que é realmente verdade.

193) Reflexões de um Presidente Acidental: FHC a O Estado de S. Paulo.

Reflexões de um presidente acidental
Democracia, liberalismo, esquerdas, fortuna e virtù na visão de FHC, o intelectual que não quer para si o silêncio dos monastérios


O Estado de S.Paulo

"Esqueçam o que escrevi." A frase, atribuída ao então presidente Fernando Henrique Cardoso - que ele nega ter pronunciado -, serviu de mote para o bem-humorado título de seu novo livro. Editado pela Civilização Brasileira com organização de Miguel Darcy de Oliveira, Relembrando o que Escrevi: da Reconquista da Democracia aos Desafios Globais reúne artigos e entrevistas do sociólogo, político e intelectual público que ocupou o Planalto por dois mandatos consecutivos, de 1995 a 2002. Dividido em cinco grandes temas - liberdade e democracia, esquerda e política, sociedade e Estado, desenvolvimento e globalização, esperança e futuro -, o livro mapeia reflexões e questionamentos ao longo de três décadas, precisamente de 1972 a 2006. Segundo o próprio Fernando Henrique, o mundo mudou, ele mudou, mas a orientação geral de suas ideias, até que não: "Se houve aggiornamento foi mais na forma do que no conteúdo", escreve na apresentação do livro.

No mesmo dia em que sua ausência se fez sentir até por uma cadeira vazia na cerimônia de desligamento do governador paulista José Serra, no Palácio dos Bandeirantes - e quando Dilma Rousseff também deixava seu gabinete em Brasília rumo à campanha presidencial -, FHC aceitou o convite do caderno Aliás para conversar e debater, por mais de duas horas, com três renomados intelectuais: o sociólogo José de Souza Martins, o filósofo Renato Janine Ribeiro e o cientista político Renato Lessa.

O encontro, aberto ao público, ocorreu no Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo, no antigo salão nobre da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde FHC defendeu sua tese de doutorado, em 1961. A seguir, uma síntese da sabatina que enfrentou ao responder às perguntas de Martins, Janine Ribeiro e Lessa.

Burguesia de Estado

José de Souza Martins: Seu livro provoca discussão do que não tem sido discutido. Sobretudo nos textos relativos ao período da luta contra a ditadura, há destaque para a relevância dos movimentos sociais na construção da nova realidade política do País, realidade pós-ditatorial. A sociedade civil concorreu vigorosamente para o fim do regime militar. No entanto, temos nos deparado hoje com advertências em torno das ameaças representadas pelo autoritarismo popular. Boa parte desse autoritarismo se expressa justamente por meio de movimentos sociais. Como fica o ideal da democracia radical?

FHC: Quando voltei do Chile, da França, a preeminência da sociedade civil nos movimentos sociais chamava a atenção. A literatura sociológica mostrava, nos anos 60, sobretudo nos anos 70, as discussões de novas formas de poder. O conceito de sociedade civil reaparecia de uma forma diferente daquela que existia no passado. A sociedade civil era a sociedade não militar. Nela, contava muito mais a presença e a participação do que a estrutura. Tanto faz se as pessoas estivessem organizadas socialmente, hierarquicamente, classe média, classe não sei o quê, empresariado e tal. A questão era estar participando, juntos, daquilo - estar no movimento da sociedade civil, "do lado bom". Na época isso se confundiu com movimentação dos trabalhadores. Mas era tudo contra o regime. Eu, que naquela altura já havia escrito uns artigos soltos sobre o tema, disse: "Cuidado, de repente vamos ver uma relação se formar entre o líder do governo e a burocracia". Parecia não haver mais a dinâmica de poder forte, no sentido anterior, de grandes estruturas de classe, de dominação. Depois do regime autoritário, fiz um trabalho sobre os anéis burocráticos apontando que a política, nesse momento no Brasil, não passava pelas estruturas tradicionais, porque havia vínculos entre setores empresariais e setores da burocracia, constituindo esses anéis. Isso, ao contrário de uma sociedade com participação mais ativa, poderia levar a uma manipulação através dos grupos de poder. É a briga pelo poder. Foi até onde cheguei naquele momento, rico do ponto de vista intelectual, mas uma tragédia do ponto de vista político. Porque nós, intelectuais, tínhamos que reagir contra. E quando os intelectuais não têm como reagir, quando o sistema está fechado, eles vão para o monastério. O Cebrap era um monastério. Uma outra discussão que ganha pertinência nos dias de hoje é o que chamo de "burguesia de Estado". Tem que tomar cuidado: vivemos num sistema democrático, as empresas estatais estão crescendo, mas o que se presencia é a formação de uma burguesia de Estado. Olha a contradição dos termos... Mais tarde, (o sociólogo) Chico de Oliveira veio com uma crítica ainda mais radical sobre o funcionamento dos fundos sociais e fundos de pensão. Em síntese, mesmo em plena democracia, as forças reais de decisão no Brasil estão se constituindo num bloco de poder que une setores do Estado com setores empresariais e os fundos. Isso é algo que é preciso discutir.

A crítica às esquerdas

Renato Janine Ribeiro: Presidente, em seu livro, sua posição favorável à privatização não aparece. E o sr. já falava de uma esquerda arcaica, tradicional, em textos dos anos 70. Ocorre que, de lá para cá, a esquerda - que o sr. preza a ponto de dialogar com ela - mudou. Vejo uma mudança grande do PT dos anos 80 para o PT do governo, não sei se para melhor ou pior. Minha pergunta é: que mudanças ocorreram entre a esquerda dos anos 70 e a de hoje?

FHC: Excelente questão. De fato, lá atrás não estava colocada a questão da privatização. Ela só apareceu nos anos 80, no governo Sarney, e depois sob Collor e Itamar. Porque o mundo era outro, isso não se cogitava. Ao contrário, era preciso que o governo investisse em interesses do setor privado para garantir o desenvolvimento. Getúlio, quando fez Volta Redonda, tinha a ideia de que fosse uma empresa privada. Só que não houve interesse por parte do setor privado, houve até uma recusa formal. Daí o Estado entrou. Depois, isso foi mudando e veio a incapacidade do setor estatal em garantir recursos e tecnologia. Para mim, privatização não é ideal nem objetivo, é uma coisa pragmática. Também acho que transformar o monopólio público em monopólio privado não é progresso, porque o importante é haver competição. Com relação a sua pergunta sobre como vejo as esquerdas, nos anos 50, 60, o eixo fundamental que se tinha era a União Soviética. Esse era o paradigma. Havia ali uma transformação grande do pensamento original marxista para a ideia do partido que toma conta do Estado e socializa os bens de produção. Democracia não se discutia, não era tema. E passou esses anos todos sem ser discutida. Claro, houve uma crise da Europa, antes do final do regime soviético, introduzindo certa abertura para a ideia de democracia como valor, sobretudo entre os italianos. Tanto na Europa como aqui, líamos e falávamos em Gramsci, embora não fosse a linha dominante. Já no final dos anos 80 vem a queda da União Soviética e, antes mesmo disso, nos 70, a globalização já estava em marcha, com seus saltos tecnológicos, a comunicação, a internet, etc. Naquele momento, vi a formação do PT. Estava-se fazendo um partido de trabalhadores no sentido proletário, o que não se sustentava, pois a concepção de que aquela classe iria transformar a história estava desaparecendo. Por ter feito essa crítica, à época, me chamavam de "policlassista". A verdade é que o PT nasceu de três vertentes: a católica, que vinha dos movimentos sociais de base, a guerrilheira/ideológica e a dos sindicalistas. Hoje, prevalece a dos sindicalistas. A vertente católica foi se esvaecendo e a ideológica perdeu peso também. Na prática, o PT vira um partido social-democrata no governo, absorvendo as transformações do mundo. Mas por que mantenho a minha crítica? Porque permanece essa luta contra a ideia de globalização e contra o que se chama de "neoliberalismo". Hoje, o governo do PT se orgulha das multinacionais brasileiras que se globalizaram e até dá dinheiro para isso. Só que, na teoria, a coisa é diferente: os documentos do partido mantêm até hoje a mesma visão antiga. O fato é que o Brasil ganhou com a globalização. Virou Bric. O que precisa agora é haver uma crítica da própria elite da esquerda, uma crítica teórica, porque, na prática, essa esquerda no poder já está fazendo até demais (risos). Há também essa defesa da "democracia plebiscitária" do Chávez, essa ideia de que se você tiver o consenso da massa tudo se justifica. É risco para a democracia.

Visões da democracia

Renato Lessa: Vejo no livro uma contribuição importante para o debate sobre a teoria democrática. Traz expressões que caíram em desuso e acabaram voltando a nossa reflexão, como "democratização fundamental" e "democracia substantiva" - a ideia de que é possível pensar a democracia além da obrigatória adesão às dimensões formais. O sr. teria trocado uma perspectiva mais sociológica do fenômeno democrático por uma mais institucionalista? Penso que seria fundamental se nós "ressociologizássemos" nossa percepção da política, para que ela não ficasse restrita ao jogo formal das instituições.

FHC: Como levar daqui para frente a democracia - essa é uma reflexão fundamental. Fiz recentemente uma conferência sobre Joaquim Nabuco, na Academia Brasileira de Letras, e me ocorreu levantar questões sobre a República, a organização política, as instituições e o processo social. Nós sempre tendemos a dissociar liberalismo e democracia em qualquer discussão. Por razão histórica há uma reação muito grande ao liberalismo no Brasil, tanto que quando alguém quer me xingar, me chama de neoliberal (risos), o que é um absurdo. Porque tomam o liberalismo como laissez-faire, simplesmente liberdade de mercado. Ora, não é isso. Hoje ninguém aqui é contra o capitalismo e sim contra o liberalismo. Mas não se pode recusar o liberalismo político, até porque a democracia substantiva não foi criada para isso. Não foi para dizer "democracia formal não vale, a representação não tem mais sentido". Não era uma volta a Rousseau. Há uma questão central: conseguiremos ou não certa convergência entre o pensamento democrático tradicional e as formas de participação direta no processo decisório? O equilíbrio é difícil. Em sociedades de massa como a nossa, e Nabuco e Tocqueville já tinham percebido isso lá nos Estados Unidos, há o risco da demagogia. Nabuco temia que nos EUA, dada a forma republicana presidencialista, houvesse uma delegação total ao tutor, o presidente da república: "Parece que os americanos ficam felizes porque elegem o próprio tutor", disse, ironicamente. Hoje, em lugar de procurarmos combinar representação clássica com participação, corremos o risco de substituir tudo isso pela figura do tutor. É um perigo. Daniel Bell (professor de filosofia na Universidade Tsinghua, de Pequim) escreveu um artigo dizendo que os chineses têm uma ideia diferente dos ocidentais: com a generalização do voto e o desejo da massa de contar com uma figura simbólica, eles têm medo de não eleger os mais capazes e sim os de maior poder de comunicação. Por isso tendem a preservar os mecanismos meritocráticos do Partido Comunista. No Ocidente, onde se conseguiu fazer parlamentarismo houve maior possibilidade de equilíbrio institucional. Onde há presidencialismo, há risco maior de cesarismo. Vamos ter que pensar: na democracia, como compatibilizar o respeito às ideias de delegação com as de participação? Temos que voltar a discutir também o que é liberalismo político, não econômico. Ser contra o liberalismo político é estar a um passo de cair no lado autoritário.

Além do possível

Martins: Forte e insistente no livro é o tema do possível. Há uma frase dizendo que "o intelectual tem de estar na fronteira do possível". Eu já fui malhado, falando nesse possível, por pessoas ligadas aos movimentos populares e da Igreja. "Não, nós temos que ir além do possível", diziam. Mas esse possível não tem a ver necessariamente com o viável, é mais do que o viável. O possível ainda está no horizonte do governante? E na atual realidade brasileira? Segundo sua interpretação, por lidar com o possível, o intelectual é incômodo. Mas acho que os intelectuais deixaram de ser incômodos. Seria um retrocesso?

FHC: Sempre dizem que a política é a arte do possível. Não. Política é a arte de tornar possível o necessário, o desejável. Se não você não muda, é conservadorismo puro. Você tem que construir essa possibilidade. Não é qualquer coisa que é possível. Você tem que ter essa capacidade de construir os mecanismos que levem você à possibilidade de se aproximar de seu ideal. Não acredito que exista uma política forte sem alguma utopia. Recentemente, o (historiador inglês) Tony Judt deu uma entrevista dizendo: "Olha, o problema fundamental para o futuro é saber quais são nossos valores. Porque a economia vai andar sozinha". As economias são muito fortes. De vez em quando um país dá uma trombada, entra numa crise e tal, depois se recupera. É preciso voltar à questão clássica grega: qual é a boa sociedade? É uma questão de valores. O que queremos fazer na sociedade? Isso justamente implica alargar o limite do possível. Não é voluntarismo, basta querer que acontece. Quando dizem "falta vontade política" me dá um arrepio. (É como se dissessem) "a culpa é dele, está lá em cima e não faz". Como se a vontade fosse o decisivo na história. Ela não é decisiva! Tem que ter alguma vontade e ser competente para tornar possível seu ideal. Acho que estamos muito viciados no economicismo do pensamento. Pensamos tudo em termos do que é possível na economia. A gente só se preocupa com "cresceu o PIB". Eu vou repetir o que disse há poucos dias a um repórter americano do Miami Herald. Ele me perguntou: "O senhor acha que o Brasil vai ser mesmo a quinta potência do mundo?" Eu disse: "Pode ser, mas o que você chama de potência? Produto interno bruto? Então talvez seja". Mas não é essa a pergunta correta. Tem que perguntar: "O senhor acha que o Brasil vai ser uma sociedade mais decente, mais digna, mais solidária, mais coesa, melhor para o seu povo, com mais igualdade?" Aí eu tenho dúvidas. Do ponto de vista econômico o Brasil vai continuar crescendo. Haverá seus ciclos, depende um pouco do governo, mas não só dele, depende de conjuntura... Mas nós já temos nos motores da nossa economia máquinas muito poderosas. Vamos levantar voo. O resto eu tenho muita dúvida. O possível para mim é você deslocar dessa fixação meramente economicista para um pensamento de valores. Como é que vamos ter realmente uma sociedade decente? Como vamos fazer para dar uma educação que permita ao Brasil avançar mais? Há muitos anos eu digo que no dia em que o País tiver telefonista ou empregada doméstica capazes de anotar um recado, então terá se desenvolvido. Não só aprendemos a voar como a fazer avião. Mas como é difícil desembarcar no Brasil! Difícil chegar à porta do avião. Se vier do exterior, passar pela aduana é uma coisa dificílima. Não se faz a fila direito. Essas coisas contam. Como é que você vai tornar o comportamento do dia a dia compatível com o comportamento que já podemos ter? Eu disse há muitos anos que o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, é um país injusto. Fui criticado. Hoje digo que, economicamente, o Brasil já teve um desenvolvimento que lhe permitiria ser um país mais justo. Mas continua sendo um país que não avançou suficientemente nos termos fundamentais de igualdade, justiça, equidade. Aqueles que vão liderar o Brasil daqui para frente terão de colocar ênfase nesse tipo de questão. Não é só fazer políticas sociais que mitiguem a desigualdade. É muito mais. Nem conseguimos ainda fazer com que todos acreditemos que somos iguais perante a lei, por exemplo. E não somos. Como é que se faz democracia onde você não tem igualdade perante a lei? Joaquim Nabuco dizia que a Inglaterra era o único país do mundo onde o duque de Westminster e seu mordomo, se fossem chamados pelo juiz, teriam o mesmo temor, e o juiz decidiria independentemente da condição social deles. Aqui não acontece isso. Não é por causa do juiz. É por causa da legislação e é por nossa causa. A sociedade brasileira aceita a desigualdade. E é indulgente com a corrupção.

Um intelectual popular

Janine Ribeiro: Seu livro é o relato de um intelectual que se tornou governante, o que é extremamente raro. Na história do País, talvez o único intelectual de seu porte que tenha chegado ao poder seja José Bonifácio - e em curto espaço de tempo, por um capricho do imperador. Mas a figura do intelectual não é propriamente popular no País. Em compensação, no Big Brother Brasil, acaba de vencer a disputa um rapaz que havia dito que ''homem que é homem não pega aids'', o que levou a Justiça a intervir no programa. No dia seguinte, esse indivíduo teve 60% de votos. Como foi possível para o sr. converter o gap que há entre o intelectual e a sociedade, de modo a transformar a possível impopularidade em liderança?

FHC: O título de um livro que escrevi e só saiu em inglês é The Accidental President of Brazil. Porque foi um acidente, de certa maneira. Uma pessoa com a minha biografia e carreira não tinha como ter voto e ser presidente da República. Ganhei do Lula duas vezes no primeiro turno, o que não é fácil, já não era. Claro que no meu caso teve uma coisa específica: o Real. Se não fosse o Plano Real eu não teria sido presidente. Podia continuar ministro, senador. Talvez nem isso. Percebi que iria ser eleito em Santa Maria da Vitória, na Bahia, no dia 11 ou 12 de junho. Cheguei por lá num avião monomotor vagabundo e pousamos na pista de terra. Estávamos atrasados e o Antônio Carlos (Magalhães), que era o dono da Bahia na época, nos esperava irritado. Quando chegamos na praça, a população tinha notas de Real na mão e gritava, feliz da vida: "Vale mais que o dólar! Vale mais que o dólar!" Vi que seria eleito. E o que fiz? Falei. Muitos se esquecem, mas eu falava todo dia. Quando houve a decisão final do plano, em fevereiro, passei horas na televisão explicando o que era e o que iria acontecer com a vida das pessoas. Então, não cheguei à Presidência porque sou intelectual, mas porque fui ministro, fiz o Real e não sou, nem nunca fui, complicado para falar. Eu me lembro que quando entrei na política, vários amigos diziam: "Ah, não vai ter voto. É intelectual". Não vou entrar em detalhes, mas figuras importantes afirmavam que eu sabia falar melhor o francês do que o português... Falo francês mal e porcamente! Diziam: "Nunca viu um pobre, só nas ruas de Paris". Isso foi dito por um grande milionário de São Paulo. Esqueceram que eu me formei aqui e, aos 29 anos, defendi tese sobre negros. Pesquisei nas favelas e cortiços do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Nunca tive dificuldade em falar com o povo. E, em política, o desempenho é fundamental. Quando numa eleição os candidatos não são bons de conversa, vêm os marqueteiros e projetam imagens. Mas em alguma hora aparece a pessoa. E se ela não é capaz de falar de modo que os outros entendam, não tem caminho na política. Pode ser eleito primeiro-ministro num regime parlamentarista, mas não chefe de Estado num presidencialismo de massas. Isso não ocorre só no Brasil. Eu estava em Brown, nos Estados Unidos, no ano anterior às primárias da última corrida presidencial, e telefonei para o Bill Clinton. Na conversa, disse: "Aqui me parece que a Hillary está bem". Ele respondeu: "Não só aí, no país inteiro". Isso foi em outubro. Quando voltei para dar aula em fevereiro, todo o mundo era Obama. A Hillary teve a máquina do Partido Democrata, era conhecida, competente, mulher, mas Obama desempenhou melhor. Obama pode não ser grande intelectual, mas tem formação sólida. Mais sólida, talvez, do que a Hillary. E desempenhou melhor.

Olhares fragmentados

Lessa: Quero falar ainda do intelectual público. Tenho a impressão de que vivemos um tempo de profunda desativação de hábitos do pensamento. Conversando com um jovem colega sobre política, fiquei perplexo ao ver com que convicção defendia o ''bicameralismo com voto distrital misto''. Na minha época éramos de esquerda, de direita ou de centro, brigávamos por isso, e hoje esse sujeito está disposto a bater nas pessoas pelo bicameralismo. Seu livro convida a um debate mais universalizado, a se pensar a política como atividade humana. Como evitar a fragmentação e reagir à perda do hábito do pensamento?

FHC: Um bom exemplo disso é a universidade. Aqui nesta sala, quando eu era representante dos alunos e depois dos doutores, se discutiam coisas de interesse da cidade e do País. Havia uma ligação direta entre estar na universidade e estar dialogando com o governo, com o poder e a sociedade. Depois, a universidade foi ficando mais ensimesmada e a vida, mais fragmentada. A qualidade do ensino não foi perdida, ao contrário, melhorou, houve mais especialização. Só que perde-se a ideia de intelectual público, de alguém que se apresenta perante a sociedade e a nação para debater ideias. Isso foi encolhendo, desaparecendo. E sobra a briga interna, que é isso mesmo: sou favorável ao bicameralismo ou não (risos). Acho que a grande força da universidade americana é exatamente o oposto disso. Ela é tão forte e se sente tão segura que não tem medo de chegar perto nem das empresas, nem do governo. No Brasil evita-se o governo por medo da cooptação. E as empresas, por medo da privatização. Às vezes recebo estudantes lá no instituto e um deles me provocou: "O que o sr. acha da privatização das universidades públicas?" Ora, alguém compra uma universidade pública? É inviável, isso é uma bobagem. A universidade tem que ser pública e vai continuar assim. Mas é preciso perder o temor do mercado. E considerar que o Estado também gera pensamento - o Ipea gera pensamento, a Petrobrás gera pensamento técnico, mas há outros setores do Estado que avançaram muito sem qualquer conexão com a universidade. Mas voltando ao intelectual público, hoje ele certamente precisa da mídia para exercer um papel e ter relevância. É uma maneira de sair do casulo e manter uma relação com a sociedade. Problema: a mídia escolhe seus interlocutores. É preciso aumentar essas escolhas, abrindo espaço para um número maior de intelectuais, para incrementar o debate público. A função do intelectual não é só resolver, mas provocar, criar caso. Por que eu brigo tanto com a esquerda? Porque eu a levo a sério - e provoco. Temos que ampliar os nossos canais de fala. Não adianta querer penetrar por dentro dos partidos, porque eles são surdos a esse tipo de debate. E nem pensar que de uma campanha eleitoral vá surgir a luz.

Candomblé com Descartes

Martins: Hoje os dois principais candidatos à Presidência da República se desincompatibilizaram. Estão abertamente na campanha. A minha tendência é ver em José Serra a personificação do Iluminismo e a reafirmação dos valores da Renascença. E vejo em Dilma Rousseff a personificação das tensões do Romantismo. Nessa eleição vamos nos defrontar com a dicotomia esquerda-direita por meio dessa modalidade de polarização?

FHC: Dá para ver que foi meu aluno e hoje me encosta na parede... (risos). Eu fiquei muito impactado com o que aconteceu na União Soviética. E muito com Gorbachev, especialmente. Porque, sendo chefe do Partido Comunista da URSS, ele recolocou a questão da humanidade. Quando disse que não dava para continuar daquele jeito, que a bomba atômica levaria à morte dos dois lados, disse coisas além da classe e do Estado. Humanidade era a grande discussão filosófica do Hegel. E lá vinha Marx criticando, dizendo que só poderia ver o universal concreto, só o proletariado, sem falar de humanidade. Gorbachev disse "cuidado, já avançamos tanto no campo tecnológico e na guerra que não dá para falar só dos extremos, nem só de classe e Estado-nação". Essa é a grande confusão que está aí até hoje. Tem classe, tem Estado-nação e tem a globalização que nos leva a um pensamento mais universal. Estamos podendo ver o homem de uma maneira mais ampla sob todas suas dimensões. De fato, somos herdeiros do Renascimento, do Iluminismo. Até Marx dizia isso. No entanto, com o pós-modernismo tudo ficou mais complicado. A fragmentação dificultou muito. Daí esse retorno do Romantismo, uma espécie de angústia de não saber como se juntam as peças. Pelo menos o Serra acha que sabe juntar as peças. E a Dilma poderá perder-se porque vem de uma tradição na qual não se misturam as peças, terá que aprender. De fato, a Dilma pode ter uma visão menos racional e mais romântica sobre as coisas. E o Serra vai numa tradição mais racional. No fundo é isso: quem vai valorizar mais o elemento da razão ou da emoção no futuro. Digo valorizar mais porque não há vida ou política sem emoção. Espero que o Serra entenda um pouco mais de candomblé. E a Dilma leia um pouco mais de Descartes.

Bazófias de ACM

Janine Ribeiro: Não posso esquecer que, conforme suas palavras, o sr. foi um presidente acidental, um presidente improvável. Então, agora, penso nos termos de Maquiavel: fortuna e virtù. Se fôssemos utilizar esses termos, diríamos que o sr. foi levado à Presidência pela fortuna. Foi ministro da Fazenda, fez o Plano Real e, portanto, se elegeu. Agora, conquistar o poder pelas armas alheias, como diz Maquiavel, coloca um problema sério, que é o de a pessoa conseguir depois enfeixar o poder nas mãos. Lembro Maria Conceição Tavares, num debate na televisão, em que dizia do senhor: "Ele acha que vai conseguir dominar Antônio Carlos Magalhães?" No entanto, antes do final do seu primeiro mandato as cartas tinham mudado por completo, o sr. havia controlado as circunstâncias. Como foi essa passagem de uma situação de fortuna para uma de virtù?

FHC: Ninguém se mantém no poder sem virtù, sem capacidade política. Claro que estamos falando na democracia. No sistema fechado é diferente. Que eu saiba, o grande líder brasileiro, Getúlio Vargas, não era de falar. Ele apenas lia o discurso: "Boa noite, trabalhadores do Brasil". A democracia requer mais do que isso. Requer um convencimento quase diário. É o que o Lula faz. O líder tem que estar o tempo todo tratando de exercer sua liderança, porque ter obtido voto não garante a legitimidade de sua ação depois. Garante legitimidade formal, mas não apoio. No dia seguinte você não tem mais voto nenhum. Você tem que ganhar de novo. No caso do Real, eu tive virtù antes, senão nem chagaríamos ao plano. O Antônio Carlos nunca teve assento em nenhuma decisão do meu governo. Friso: nenhuma. Ele tinha poder na Câmara e no Senado. E isso fascina, dá a impressão que vai comandar tudo. Não era assim. Nunca imaginou que eu fosse mexer com ele. Antônio Carlos foi para Miami e disse na televisão umas bobagens de que não gostei. Pois eu mesmo escrevi as cartas de demissão dos dois ministros ligados a ele. Tem que ter coragem. Ninguém governa sem ela. Mas essa coragem não deve ser bazófia. Tem que ser coragem moral. E outra coisa; as decisões mais importantes são solitárias. Se eu fosse perguntar aos meus amigos e partidários se deveria demitir ou não os ministros ligados ao Antônio Carlos eles iam dizer que não, porque aquilo criaria uma crise no Senado. Então você tem que ir lá dentro de você, sozinho, tomar a decisão e atuar. Líder precisa ter a capacidade de se isolar e de ouvir o outro. Muitos perguntavam como é que eu recebia certos políticos, mas tem que receber. Mesmo os que são abandidados, até para compreender o jogo deles. Eu sempre procurei manter o olhar do sociólogo, dar espaço. Então o sujeito saía de lá feliz: "Conquistei o presidente". Conquistou coisa nenhuma. Você deu elementos para o presidente, depois, no isolamento, julgar o que dá para fazer e o que não dá para fazer. Esse exercício é permanente. Maquiavel tem absoluta razão. Tem que ter sorte, mas não basta. Tem que ter virtù. E a virtù não é um dom, você a desenvolve. Veja o Lula e eu em 1970. Você acha que nós já éramos o que somos hoje? Não. Fomos desenvolvendo certas habilidades. O mais difícil é lidar com os que estão próximos. Como é que você controla os seus? Questão que vai se colocar se a Dilma se eleger. O Lula a controla. Ele é maior, e sabe como controlar. A pressão maior que o presidente sofre é dos que estão com ele, não é dos que são contra. Dos que são contra ele lê no jornal.

Utopias regressivas

Lessa: Os movimentos sociais aparecem nos seus textos em chave dupla: uma delas é o reconhecimento de que eles limitam os autoritarismos. Outra, de que são a expressão de identidades parciais e fragmentadas. Para além de um debate sobre dois gerentes na campanha presidencial, acho que há outro tema, da maior gravidade, subjacente à democratização brasileira: a reestruturação do espaço público. Temos um Poder Executivo forte, um problema de representação no Legislativo e o hiperativismo do Judiciário. Ocorre que todos se ajustaram à situação. Sabem procurar o juiz, mas não conhecem o caminho dos partidos e da representação. Como resolver isso?

FHC: Para te dizer em termos não abstratos, mas práticos: o que fazer com o MST, por exemplo? Houve momentos, em 1997, que dava a impressão de que ou se fazia a reforma agrária ou o Brasil estava perdido. Ninguém percebia, na época, a grande transformação que estava havendo no agrobusiness. Todo o foco era o MST. Em 1997 houve uma imensa mobilização em Brasília. E repleta de palavras de ordem inacreditáveis, como se estivéssemos próximos de fazer a Revolução Soviética. Como criar um espaço público que permitisse um diálogo democrático? Eu recebi o MST várias vezes. Algumas estão gravadas até. Estive com o João Pedro Stédile. Com o José Rainha, nem se fale: esse ia à noite ao Palácio da Alvorada. Mas era difícil a relação, pela razão de que os valores deles são inegociáveis. É uma negociação falsa: eles não vão para discutir a política pública, vão para botar o presidente, ou o ministro, contra a parede. Aqui em São Paulo, hoje, está havendo uma manifestação (de professores) para botar o governador contra a parede. Não há pauta de negociação. É só pressão. Não existe em um movimento como o MST a ideia de passar pelos canais institucionalizados, partidos, etc. Existe é pressão. E valores impossíveis, arcaicos, que chamo de "utopias regressivas". Como se fosse possível ao Brasil voltar à Idade Média. Com o tempo esses movimentos vão esquecendo a utopia, e querendo pequenas vantagens, o que é mais triste ainda. Realmente, a fragmentação é enorme. A teoria democrática no Brasil vai ter que absorver isso e discutir como incorporá-los ampliando o espaço público. Quando falo do risco de um subperonismo no Brasil é a isso que me refiro. Como não há canais públicos de integração e de aceitação - e alguns acham que sua razão é a única, o que é um fundamentalismo -, isso acaba facilitando um certo cesarismo, aquela ideia de que há alguém capaz de resolver tudo. Temos problemas com a democracia no Brasil, mas não é que vá haver outro golpe militar ou fraude nas eleições. É uma coisa mais substantiva mesmo. São problemas nossos, da sociedade, não só dos partidos.

O texto foi corrigido em 05/04. Anteriormente, a palavra 'bloco' foi alterada para 'golpe' em 'mesmo em plena democracia, as forças reais de decisão no Brasil estão se constituindo num bloco de poder que une setores do Estado com setores empresariais e os fundos'.