quarta-feira, 28 de abril de 2010

105) As cotas para negros e a desigualdade brasileira, por Fernando Abrucio.


O sucesso das políticas públicas depende da definição clara dos problemas que elas querem combater, bem como da adoção de medidas que acertem o alvo correto. Essa pequena digressão técnica é necessária para tornar mais preciso um debate que está no centro da agenda pública: a questão das cotas para negros em universidades. Para que serviria essa política discutida hoje de forma tão radical? Com certeza ela não seria capaz de atenuar o sofrimento dos negros durante a escravidão.

Quanto a isso, o máximo que podemos fazer é lembrar sempre dessa mácula da história brasileira. É importante frisar isso porque alguns revisionistas têm argumentado que a população negra não sofreu tanto assim, pois alguns dos africanos foram traficantes e, outros, quando libertos, logo compravam seu “escravinho”. Há ainda a tese, arrancada à força do pensamento de Gilberto Freyre, de que a convivência entre brancos e negros fora “pacífica”. Afinal, milhares de estupros foram “consentidos”.

Tais analistas produziram uma grande falácia lógica. A existência de alguns escravos traficantes ou compradores de outros indivíduos de sua cor não elimina a existência de um brutal sistema opressor contra milhões de pessoas. Foi contra isso que os abolicionistas se insurgiram. Creio que nossos intelectuais revisionistas talvez fossem à época contra a abolição, porque “tudo estava bem no Brasil da miscigenação”. Em sua argumentação, esse revisionismo não é diferente do praticado por historiadores que desmentem a existência do Holocausto por encontrarem a existência de um ou outro judeu que apoiou o nazismo.

Apresentar o debate da escravidão de forma completamente distorcida não ajuda o debate das cotas. Não que as desigualdades atuais sejam fruto apenas da escravidão. É bem provável que muito da situação atual se explique pela falta de políticas no pós-escravidão. Mas um fato é evidente nos estudos empíricos: há desigualdade entre brancos e negros com mesma situação de renda e escolaridade.

Muitos estudos econométricos mostram que, em contexto social similar, os negros têm pior desempenho escolar que os brancos. Recentemente, coordenei uma pesquisa sobre escolas públicas e um dos pesquisadores presenciou o que só conhecíamos por estatística. Numa sala de aula com alunos em situação equivalente de pobreza, havia uma divisão na qual, de um lado, ficavam os brancos e, de outro, os negros. Isso se repetia no intervalo. Pior: o tratamento docente era francamente favorável aos brancos. Conversamos com a professora e com a diretora: nenhuma delas havia percebido essa discriminação. Um racismo tão invisível e enraizado é difícil de combater apenas com políticas iguais para todos. Para questões como essa, deveria valer a máxima de tratar desigualmente os desiguais para alcançar a justiça social.
Um racismo tão invisível e enraizado é difícil de 
combater apenas com políticas iguais para todos
Não pense, leitor, que o problema está resolvido, pois a forma como for feita a política afirmativa, termo mais correto que cotas, afetará os resultados. Cotas muito amplas e sem nenhum critério de mérito não podem ser um desestímulo para o estudo dos negros? Ademais, o cotismo não poderia se transformar numa política racialista que geraria uma tensão inexistente em nossa sociedade? São perguntas fundamentadas (e não ideológicas) em termos de políticas públicas.

Para elas, deve haver respostas ainda no terreno das políticas afirmativas. É possível ter cotas mais controladas do ponto de vista do tamanho e do mérito, inclusive com ações de ajuda aos negros já nos ciclos escolares anteriores, uma vez que a maioria deles fica no meio do caminho e nunca será cotista. Quanto ao possível acirramento racial, ele não tem acontecido nas universidades com cotas. Uma legislação e um debate equilibrados poderiam conter isso.

Há dois outros grandes benefícios que uma política cotista equilibrada produziria. O primeiro é aumentar a autoestima dos negros, por meio da constituição de novas lideranças lastreadas na escolaridade. Além disso, teríamos uma maior diversidade em nossas melhores universidades, onde os negros são raríssimos. Se tivéssemos tal diversidade no meio das elites, a discussão da escravidão não teria sido retomada de forma tão leviana e inconsequente.

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