Abaixo, uma entrevista dada por Evaldo Cabral de Mello ao jornalista Geneton Moraes Neto faz pouco mais de quatro anos. No entanto, ela bem poderia ter sido dada hoje, pois continua a fazer sentido e a se relacionar com nossa realidade. A despeito de algumas colocações sem muito rigor - quando fala do mito da sensatez mineira, por exemplo - o historiador levanta certos pontos importantes que permanecem a ter expressão política nos rumos que nossa máquina pública tem tomado. Tenho uma profunda admiração por essa pessoa que não se deixa levar por "histórias da carochinha".
Vinícius Portella
Porto Alegre,
10 1609 abr 2010.
EVALDO CABRAL DE MELLO
O mais importante historiador do Brasil decreta: "O brasileiro é um dos povos mais piegas do mundo". (Quer uma prova? Vá a um aeroporto!)
Rio de Janeiro - Apontado como o mais importante historiador brasileiro em atividade, o pernambucano Evaldo Cabral de Mello treme nas bases ao pensar na possibilidade de ser reconhecido por estranhos na rua. Por essa razão, vem se esquivando dos pedidos de entrevista para a televisão. A luz dos refletores incomoda a timidez deste diplomata de carreira aposentado que escolheu o Rio de Janeiro como paradeiro depois de correr mundo. A árvore genealógica dos Cabral de Mello ostenta o brilho de outro astro: o poeta João Cabral de Mello Neto, irmão de Evaldo.
Desde que foi descoberto pela imprensa, o historiador Evaldo, autor de livros já clássicos sobre a dominação holandesa no Brasil, ganhou também o status de estrela. Irônico, dono de idéias originais sobre o Brasil e os brasileiros, Evaldo Cabral de Mello diz que só existe um povo tão piegas quanto o brasileiro: o português. Nesta entrevista gravada para a Globonews - a primeira que concedeu à TV - Evaldo Cabral de Mello faz um alerta: o subdesenvolvimento pode não ser uma condição passageira. O autor do recém-lançado "O Negócio do Brasil" reclama também de uma obsessão brasileira: a busca por uma identidade nacional". Somente países inseguros, diz ele, se preocupam com esta questão.
Geneton Moraes Neto - O senhor diz que a festa dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil será a "apoteose" da pieguice luso-brasileira. Quais são os sintomas dessa pieguice ?
Evaldo Cabral de Mello - Vou citar apenas dois exemplos - que me parecem engraçados. Primeiro : a quantidade de pessoas que, no Brasil, se deslocam aos aeroportos para levar parentes e amigos. Se o você pensar bem, cada pessoa que pega um avião no Brasil é levada por outras cinco ao aeroporto...Ou vão cinco receber cada pessoa que chega. Em relação a Portugal, me lembro do caso que me contou o pintor Cícero Dias. Morador em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, ele se divertia muito ao ver os barcos que faziam a ligação entre o Terreiro do Paço e Cacílias. É como a barca Rio-Niterói. A distância é até menor que do que a do Rio a Niterói. Cícero ficava sentado, às gargalhadas, vendo o número de pessoas que, aos prantos, se despediam de parentes que iam atravessar o rio...".
GMN - Qual é o maior mito, a maior mentira que existe na História do Brasil ?
ECM - São tantos os mitos que o problema maior é o embaraço da escolha. Vou me referir a um, devido à atualidade do assunto : o mito do bom senso dos mineiros. A eleição de Itamar Franco provou que os mineiros são tão insensatos quanto o restante dos eleitores brasileiros. O mito da sensatez mineira, vis a vis da insensatez brasileira, caiu completamente".
GMN - De que figura histórica o senhor não compraria um carro sob hipótese alguma ?
ECM - De várias ! Para individualizar, eu não compraria um carro de François Mitterrand, o ex-presidente da França. Todo o percurso político de Mitterrand foi bastante tortuoso. As pessoas, inclusive na França, só se deram conta deste fato nos últimos anos da presidência de Mitterrand, porque ele tinha conseguido, ao longo de toda a carreira política, escamotear a participação que teve inclusive no governo de Vichi, no tempo da dominação alemã. O grosso da população não conhecia. Os poucos que sabiam não falavam. O general De Gaulle, que evidentemente era inimigo político de Mitterrand, uma vez disse, sobre ele: "Este homem comeu em todos os cochos da República".
GMN - Nós temos a tendência de enxergar, no futebol e no carnaval, traços do caráter brasileiro. O futebol resumiria nosso talento para o improviso. O carnaval seria uma prova de nossa vitalidade. O senhor, como historiador, acha que o futebol e o carnaval são retratos fiéis do brasileiro ?
ECM - São retratos parciais do brasileiro do século vinte. A popularidade do futebol e do carnaval no Brasil são fenômenos bastante recentes. O carnaval que se conhecia no Brasil no período colonial e ao longo do século dezenove era o chamado entrudo português - que não tinha nada a ver com o carnaval que se faz atualmente no Brasil. Já o futebol foi um jogo transplantado para Brasil por funcionários ingleses de companhias de eletricidade e outras que operavam aqui no fim do século passado. Para o século vinte, compreender o Brasil sem o futebol e sem o carnaval é impossível. Mas é preciso ter presente que todas essas idéias de identidade nacional, tanto no Brasil como fora, têm muito de uma construção ideológica. Nenhum país tem identidade. Uma identidade é inventada para um país. O futebol e o carnaval, então, são dois elementos fundamentais através dos quais a cultura brasileira do século dezenove inventou uma identidade para o Brasil. A preocupação com a identidade nacional, que sempre houve desde o período colonial, só se tornou absorvente e monopolizou as preocupações do Brasil do Modernismo para cá, ao longo dos últimos oitenta anos".
GMN - O senhor diz que a busca permanente por uma identidade nacional é uma característica de "países inseguros". A busca por uma identidade não seria, pelo contrário, um sinal de vitalidade ?
ECM - Pode ser um sinal de vitalidade, mas este detalhe não exclui o fato de que normalmente os países não se perguntam por suas identidades ! Os países vivem suas vidas sem perguntar e sem levantar este problema !. A tendência a proclamar a identidade em face do mundo, como ocorre hoje com o Brasil, me soa como uma espécie de narcisismo coletivo que acho desagradável, como todo tipo de narcisismo. Todo tipo de narcisismo ,individual ou coletivo, é uma agressão em relação ao próximo. A mania de ficar lançando aos olhos da humanidade a nossa grande originalidade nacional me parece uma coisa de gosto duvidoso".
GMN -...Mas a busca por uma identidade nacional gerou obras fundamentais, como Casa Grande & Senzala; livros importantes, como "Teoria do Brasil" - de Darcy Ribeiro - e até movimentos culturais, como o Manifesto Antropofágico, por exemplo. O senhor nega o valor dessas obras ?
ECM - Claro que não nego o valor dessas obras, essenciais para a cultura brasileira no século vinte. O que estou dizendo apenas é que elas correspondem a uma receita cultural que, como toda receita cultural, se esgota ao longo do tempo, como as escolas literárias ou escolas de pintura se esgotam. Toda essa preocupação com a identidade na cultura brasileira já vem dando evidentes sinais de cansaço. Já não produz hoje os livros que produziu há cinqüenta, sessenta anos. Pelo contrário : nota-se um declínio pronunciado na qualidade dos livros. Porque não há como falar indefinidamente de um assunto que, por natureza, é esgotável".
GMN - Agora que o final do século vem se aproximando, há uma epidemia de listas dos maiores, melhores e piores. Quem foi o maior brasileiro do século vinte ?
ECM - Eu perguntaria quem foi o brasileiro mais importante do século vinte, não o maior. O brasileiro de maior influência sobre o século, até diante do tempo em que exerceu o poder, foi Getúlio Vargas, assim como o brasileiro de maior impacto na história nacional no século passado foi Dom Pedro II -que ficou quase cinqüenta anos como imperador".
GMN - O julgamento da história vai ser favorável ou desfavorável a Getúlio Vargas ?
ECM - Todo julgamento da história é misto. É raro a história fazer julgamentos completamente positivos ou completamente negativos. Getúlio deixou um herança que, como toda herança política, é ambígua. Podem-se ver pontos positivos, assim como podem-se ver falhas incríveis. É evidente, por exemplo, que ele foi o responsável por toda essa onda populista que se gerou no Brasil dos anos quarenta para cá. Igualmente, é inegável que ele tinha uma inclinação autoritária bastante pronunciada. Getúlio se beneficiou da inclinação autoritária que havia na sociedade e no regime político para permanecer longo tempo no poder. Mas é também inegável que, durante o governo de Getúlio Vargas, o Brasil alcançou metas importantes, sobretudo em matéria industrial. Pela primeira vez, teve-se a noção de planejar a economia brasileira no sentido da industrialização do país".
GMN - Por que é que o senhor ficou decepcionado com os diários de Getúlio Vargas ? O senhor acha que, na intimidade, faltava grandeza a ele ?
ECM - O que me decepcionou é que, como historiador, eu esperava, talvez, revelações sensacionais. O diário, na verdade, é um documento de um burocratismo cansativo. Getúlio foi, sobretudo, um grande burocrata; um homem com um pronunciado gosto da administração, o que, aliás, é uma característica bem rara em políticos brasileiros. O fato é que os políticos brasileiros têm horror à administração. Se eles se dedicassem apenas ao poder legislativo, não haveria maior problema. Mas chega um momento em que o político transita do legislativo para o executivo. Quando chega ao executivo, evidentemente que ele não pode continuar a se comportar como um deputado ou um senador. É preciso que o político brasileiro que se proponha a exercer funções executivas tenha o gosto da administração. Mas o que observo é que há uma carência quase generalizada nos políticos brasileiros. Porque os políticos brasileiros gostam do debate político-ideológico, gostam da transação, mas, quando estão diante da possibilidade de administrar um estado ou um município de maneira objetiva, caem na tentação política! Não conseguem se desligar da antiga condição de deputado ou senador para transitar para a condição de um executivo. Getúlio tinha o gosto pela administração, se bem que este gosto fosse bastante burocrático, fosse muito pouco inovador".
GMN - O senhor já reclamou da falta de objetividade do brasileiro. Aqui, quem é pouco objetivo é "tido como inteligente". O senhor quer que o brasileiro se transforme num alemão - metódico, frio e eficiente ?
ECM - Não. Ocorreria uma negação da autenticidade do brasileiro se ele se transformasse num alemão. Mas seria bom que o brasileiro tomasse consciência de uns tantos defeitos da sua formação cultural e procurasse corrigi-los num sentido mais compatível com as exigências de um mundo crescentemente globalizado. Não adianta, diante da globalização, fincar os pés no terreno ou fazer como um avestruz. Não se pode ignorá-la ou detê-la. É preciso encará-la e enfrentá-la como brasileiro, mas também com a consciência de que a globalização vem trazer mudanças completamente irresistíveis".
GMN - O senhor disse, numa entrevista, que o Brasil conseguirá, no máximo, ser um "Canadá dos Trópicos". Isso é uma avaliação otimista ou pessimista ?
ECM - Bastante otimista! Afinal de contas, eu me sentiria muito bem se tivesse a certeza de que, em vinte, trinta anos, o Brasil teria a renda per capita, o grau de desenvolvimento, o respeito pelos direitos humanos e as instituições democráticas estáveis que existem no Canadá, a despeito de todos os problemas de separatismo que os canadenses têm. Eu quis me referir, com a expressão "Canadá dos Trópicos", a um país que fosse desenvolvido, ocidental, democrático - com a diferença de que fica nos trópicos. A mim não me parece que o povo brasileiro tenha vocação para grande potência. O Canadá é um país que conseguiu um nível de vida e certa projeção internacional, mas não reivindica um estatuto especial de grande potência, não tem ambições mundiais. Eu pessoalmente me pergunto se o Brasil, que ainda vive o processo de pôr a própria casa em ordem, é um país em condições de exercer uma influência internacional ampla. Nós podemos exercer influência dentro da América Latina, no Mercosul, nas nossas relações com a Europa ocidental, com os Estados Unidos, com países da África, em vista de nossa herança comum, mas acho otimista, pelos próximos vinte ou trinta anos, ver o Brasil como uma das potências mundiais".
GMN - Há autores que dizem que o subdesenvolvimento pode não ser apenas um estágio rumo ao desenvolvimento, mas uma condição permanente. Nós corremos este risco?
ECM - Corremos, como todo país em desenvolvimento. Dos anos cinqüenta e sessenta, herdamos um otimismo fácil que pensava que normalmente todo país acaba se desenvolvendo. É uma idéia completamente equivocada ! Um país pode encontrar ao longo de seu percurso econômico obstáculos que não consiga resolver nem vencer. O país pode se ver numa situação de estagnação. Veja-se o caso da Holanda no século dezoito. A Holanda foi a primeira potência capitalista do ocidente, no século dezessete. Um século depois, devido a uma série de limitações, a Holanda foi passada para trás por um pelotão de países - sobretudo a Inglaterra, mas também a França. Passou, inclusive, por um período econômico de regressão bastante pronunciada, até que, no século dezenove, resolveu se recuperar para se tornar o grande país industrializado que é hoje - mas longe de pretender qualquer posição de primeiro plano no cenário mundial. Temos, realmente, uma noção linear do processo de desenvolvimento, como se saíssemos de uma posição de subdesenvolvimento para outra posição. De qualquer maneira, o Brasil tem grandes chances, por nossas dimensões continentais, por nossa estrutura de recursos naturais, pelo grau de desenvolvimento que já atingimos, pela existência de um parque industrial. Mas é evidente que a maioria dos países do Terceiro Mundo não tem condições de se desenvolverem no sentido do desenvolvimento dos países europeus"..
GMN - O senhor, então, não subscreve esta crença de que o Brasil um dia, no futuro, seria uma grande potência?
ECM - Não há garantia nenhuma para um país, qualquer que ele seja, de que se tornará, em dez, vinte ou trinta anos, superdesenvolvido ou uma grande potência. Vai depender da capacidade das classes dirigentes - e da população em geral - para responder aos problemas que vão surgindo. Devo dizer que a experiência do Brasil no último meio século não é especialmente encorajadora. Se fomos capazes de resolver problemas e criar um parque industrial, o fato é que há uma série de problemas que o Brasil não vem conseguindo resolver a contento ! São problemas que o país não pode ficar indefinidamente sem resolver. Isso implica um atraso substancial no projeto desenvolvimentista. Um exemplo : reforma agrária é um negócio que já deveria ter sido feito no brasil desde os anos cinqüenta, sessenta. Controle demográfico é uma coisa que deveria ter sido feita no Brasil desde os anos cinqüenta. Eu sei que seria utópico esperar que tivéssemos feito este controle nos anos cinqüenta, quando havia obstáculos institucionais ao controle demográfico. Mas o fato é que, se o Brasil tivesse feito uma reforma agrária e um controle populacional a partir dos anos cinqüenta, a situação do país hoje seria incomparavelmente melhor, sobretudo do ponto de vista das disparidades de renda - que não seriam tão pronunciadas - e da violência humana, com a criação de enormes cidades com populações flutuantes e desempregadas. Não teríamos o grau de desemprego que estamos ameaçados agora de ter. Quando olho de volta no tempo, tenho a sensação de que o Brasil perdeu, nos anos cinqüenta, um momento essencial. Houve a presidência Kubitscheck, um ponto positivo, sem dúvida. Mas outras coisas foram completamente deixadas de lado. Os primeiros anos da década de cinqüenta me dão a impressão de anos perdidos".
GMN - A natureza tropical, grandiosa e barroca, é triste e deprimente, na opinião do senhor. Mas uma natureza grandiosa não poderia inspirar, o país, ideais de grandeza ? Por que é que o senhor não gosta dessa natureza tropical ?
ECM - Se natureza grandiosa inspirasse ideais de grandeza, a Suíça seria uma grande potência mundial. É uma questão de gosto estético. Eu entendo perfeitamente que uma pessoa goste de paisagens tropicais. Mas não gosto de nada majestoso. Tudo o que é majestoso me deixa perfeitamente frio. Comparado com certas paisagens européias, a paisagem tropical é majestosa, monumental. Não me diz nada. Sou muito favorável á paisagem já marcada pelo homem; a paisagem que tem o seu lado histórico. Já a paisagem nua e virgem não me atrai, absolutamente".
GMN - O senhor é uma dos maiores especialistas brasileiros sobre o período de dominação holandesa no Brasil. Se os holandeses tivessem ficado no Brasil, nós estaríamos hoje numa situação melhor ou pior ?
ECM - Não há historiador que possa dar resposta a uma pergunta dessas. Se der, não é historiador. Mas, no século dezenove, houve uma tendência nativista de negar o valor da colonização portuguesa e dizer que, se os holandeses tivessem permanecido no Brasil, o nosso país seria um país muito mais próximo dos padrões ocidentais de vida. O que existe por trás desse debate é uma opção ideológica. É preciso partir de um princípio determinado para dar uma resposta. Se o essencial da história brasileira é a preservação da unidade nacional e da integridade territorial, então é evidente que a colonização portuguesa foi preferível, porque garantiu essas condições. Mas, se você achar que o importante não é a unidade nacional ou a integridade territorial, mas a adoção de valores mais compatíveis com a democracia, com os direitos humanos e com o desenvolvimento capitalista, então é possível e plausível que a colonização holandesa tivesse sido mais favorável. De qualquer forma, não se deve esquecer que a Holanda colonizou a Indonésia atual, um país que, pelo que se sabe, não parece ter assimilado as grandes virtudes nacionais do povo holandês. Toda esta discussão me parece um pouco acadêmica.."
GMN - Em certas áreas, fala-se com um pouco de saudosismo sobre a passagem do príncipe holandês Maurício de Nassau pelo brasil. Afinal, ele trouxe uma corte de artistas, construiu o primeiro observatório astronômico das Américas no Brasil. O senhor acha que existe fundamento histórico nesse saudosismo ?
ECM - É evidente que o governo de Nassau foi um episódio completamente excepcional na história colonial do Brasil. Mas toda nostalgia histórica é inútil, infecunda e improdutiva. O que temos de fazer é olhar para a frente; não para o período holandês".
GMN - Que avaliação o senhor faz do príncipe Maurício de Nassau ?
ECM - É uma das personalidades mais simpáticas da história brasileira !".
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