Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto
Como director primeiro da colecção Filosofia Aberta (na Gradiva) e agora da Filosoficamente (Bizâncio), além de colaborar com outros editores como as Quasi, Edições 70, Antígona, Didáctica Editora e Temas e Debates, tenho tido uma larga experiência na publicação de livros introdutórios de filosofia, ao longo dos últimos dez anos. Mas será realmente importante publicar tais livros? Esta é a pergunta a que procurarei dar resposta.
Quando se trata de escrever um livro ou de organizar uma antologia original, a primeira coisa a ter em mente é: para quem é este livro importante? O mesmo acontece quando se trata de escolher, de entre as centenas de livros publicados noutras línguas, o que vamos traduzir para publicar em português. Esta pergunta pode parecer estranha porque há uma tendência entre as pessoas que lidam com livros, sejam académicos ou romancistas, para nunca considerar tal coisa: tudo o que conta, ao que parece, é o próprio umbigo.
Quando comecei a dirigir a Filosofia Aberta, o editor da Gradiva, Guilherme Valente, disse-me que não há sucesso cultural sem sucesso comercial. Isto a princípio pareceu-me falso e revelador de uma mentalidade mercantilista, mas depois compreendi que era apenas a negação da atitude egocêntrica que domina a relação que muitas pessoas têm com a vida cultural. A minha primeira tarefa foi começar a visitar as livrarias portuguesas — que não visitava há anos, pois tudo o que lia vinha do estrangeiro (o que nessa altura não era tão fácil porque não havia ainda Internet). E comecei também a dar atenção às necessidades de professores, estudantes e público em geral, para poder publicar livros que fossem para eles significativos. Esta atitude é por vezes irritante, pois dava-me imensa vontade de publicar The Nature of Necessity, de Plantinga, por exemplo, mas sabia que este livro não seria significativo para a generalidade dos leitores.
Assim, a primeira tarefa ao pensar publicar um livro é pensar quão significativo ele pode ser para o público. Um livro demasiado sofisticado pode ser muitíssimo bom, mas se as pessoas não têm preparação para o compreender e poder dialogar com ele, o seu efeito cultural é nulo, apesar de poder dar prestígio a quem o publica. Contudo, quando se fala de sucesso comercial, em filosofia, temos de ter em mente que nesta área há ritmos diferentes. No caso da filosofia (como nas ciências, história e outras áreas académicas) estamos a trabalhar com livros cuja vida útil é muito superior, se o livro for realmente bom, à da maior parte dos livros. Assim, o sucesso comercial de um livro de filosofia nunca é como um best-seller, mas se o livro for de alta qualidade e adequado para o público, terá vendas constantes ao longo de muitos anos, ao passo que um best-seller tem uma vida útil curta — dois anos ou menos, por vezes. Quase todos os livros que publiquei há quase dez anos continuam a vender-se bem hoje em dia, porque continuam a ser importantes e significativos para novas gerações de leitores.
Quando comecei a contactar mais intimamente com a vitalidade editorial de outros países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, compreendi que, nestes países, publicar livros de filosofia não é uma tarefa comercialmente votada ao fracasso. Sendo verdade que nestes países se publica muitos livros de venda muito reduzida — monografias e estudos sofisticados — publica-se também imensos livros introdutórios, antologias e outros livros muitíssimo importantes para a qualidade do ensino. Basta acompanhar os catálogos de filosofia de editores como a Oxford, Cambridge, Blackwell e Routledge, para referir só algumas das mais importantes editoras na área, para perceber que estes livros são não apenas comercialmente viáveis como comercialmente apetecíveis.
Contudo, na minha mentalidade muito tola da altura, pensava que o comércio e a cultura são necessariamente antagónicos. Esta mentalidade resultava de pura ignorância e provincianismo. Há milhares de estudantes que estudam filosofia porque gostam, e gostam por isso de bons livros de filosofia e precisam deles; há muitas mais pessoas interessadas em filosofia, ainda que não a estudem na universidade. Por que razão não haveriam estas pessoas de comprar livros de filosofia significativos para elas? Claro, não poderão comprar livros muitíssimo sofisticados, como o mencionado de Plantinga, pois para poder compreender esses livros precisam primeiro de estudar os outros. E se só publicarmos livros desses, essas pessoas vão às livrarias, compram um desses livros, levam para casa e, depois de lutar debalde com os primeiros capítulos, abandonam a leitura porque não compreendem o que estão a ler. Vão de novo às livrarias e compram mais alguns livros de filosofia; mas se esta experiência frustrante se repetir, vão pensar que a filosofia é ininteligível e param de comprar. É por isso que tantos editores pensam que editar filosofia não é comercialmente viável: porque editam livros inadequados.
Repare-se que o problema não é realmente apenas comercial: é cultural. Se publicamos livros que as pessoas não compram, não estamos a ajudá-las a conhecer melhor a filosofia, que era o que elas queriam. Além disso, se não houver livros introdutórios de qualidade, não poderá haver ensino de qualidade da filosofia — e consequentemente não haverá investigação de qualidade em filosofia. Um professor excelente dá aulas excelentes a vinte estudantes num semestre, mas nesse mesmo semestre um livro excelente ajuda mil estudantes, ou muitos mais, a atingir a excelência. A importância dos livros para a qualidade do ensino e consequentemente da investigação não podia ser maior.
Outro aspecto algo absurdo da minha mentalidade que tive de corrigir foi o seguinte: à semelhança dos meus colegas e professores, inicialmente eu pensava apenas nas Grandes Obras — Obras Completas de Aristóteles, Obras Completas de Husserl, etc. A publicação destas obras, contudo, não é prioritária ou pelo menos não é tão importante quanto a publicação de obras introdutórias. A razão é muito simples: quem está já num nível de sofisticação suficiente para poder ler estas obras adequadamente, tem de dominar uma língua qualquer culta e pode então ler estas obras nessa língua. Mas o estudante que dá os primeiros passos, ou o grande público, tipicamente não está habituado a ler noutra língua e muitas vezes nem pode realmente fazer isso porque não domina outra língua. De modo que a publicação das Grandes Obras é chover no molhado. Isto não é dizer que não se deva estimular a tradução e publicação de obras mais sofisticadas; quer apenas dizer que se desprezarmos a publicação de obras que formam o público e os estudantes, nunca teremos realmente público para as outras — e depois, quando as publicamos, ficamos muito desconcertados porque se venderam muitíssimo mal.
Evidentemente, é muito fácil ter uma atitude algo sobranceira e declarar que os livros introdutórios não nos interessam. Mas isto tem de ser falso e a sua falsidade revela-se quando os professores começam a queixar-se da falta de qualidade dos alunos, ou quando os investigadores começam a queixar-se da falta de qualidade dos colegas. Nos dois casos, essa falta de qualidade é o resultado directo da ausência de bons livros introdutórios. Se os alunos e investigadores pudessem estudar esses livros, seriam melhores alunos e melhores investigadores. Por isso, quem se queixa de qualquer destas duas coisas e ao mesmo tempo despreza a bibliografia introdutória de filosofia está pura e simplesmente a contradizer-se — sem que disso se aperceba, evidentemente.
Estas são algumas das razões que me fazem pensar que os livros introdutórios são importantes. Resolvi escrever este artigo porque me parece que muitos professores e até estudantes não vêem as coisas desta maneira, e eu penso que estão errados pelas razões que procurei apresentar. Até que ponto a minha opinião é falsa e a tarefa de publicar livros introdutórios é pura perda de tempo? A esta pergunta só o leitor pode responder.
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