terça-feira, 20 de abril de 2010

87) Uma Crítica do Capitalismo, por Roberto Campos.

Abaixo, uma crítica do capitalismo feita por Roberto Campos. Acredito que o diplomata, à época parlamentar, tenha sido muito feliz em seu texto. Há um certo anti-capitalismo que paira nos ambientes acadêmicos e que é totalmente alheio às necessidades materiais a que um sistema econômico deve responder. Vejo como legítimas, é claro, reivindicações quanto a "justiça social" encampadas por muitos desses grupos contrários ao capitalismo , por exemplo, o problema disso está quando ela extrapola o mundo e sua consecução torna-se muito difícil ou inexequível, virando uma mera construção do pensamento alheia à realidade. Sem falar quando nobres ideais levam a consequências abjetas...

Vinícius Portella

Porto Alegre,
20 0103 abr 2010.


Uma Crítica do Capitalismo
Roberto Campos
Estado de SP, 26/03/95

O Brasil, do ponto de vista do Estado, é uma versão carnavalesca da retórica socialista
"A democracia e o capitalismo têm uma coisa em comum: são os piores regimes do mundo, excetuados, como dizia Churchill, todos os outros".
(Do diário de um diplomata)

Tanta asneira tem sido dita pela fauna estatolatra - e não sei se os piores serão os gigolôs da viúva, que vivem das gordas estatais, ou os tolos por vocação e os ignorantes compulsivos - que resolvi dar a minha ajuda com uma crítica do capitalismo. Também me estimulou a leitura, na Folha de S.Paulo do dia 22, de uma longa análise de José Genoino e Tarso Genro, duas figuras respeitáveis do PT, sobre o Estado: séria, bem intencionada - e totalmente equivocada.

Primeiro, vejamos o elementar. Por volta do começo dos anos 80, o fracasso generalizado das economias planificadas; o descalabro do "socialismo real"; o fraco desempenho, durante a crise dos anos 73/82, da chamada "sintonia fina" da economia e, de modo geral, do intervencionismo macroeconômico inspirado por Keynes levaram a uma revalorização dos mecanismos automáticos de ajuste do mercado, ao invés de decisões de burocratas. É isso, em suma, que se chama de neoliberalismo.

A economia de mercado (ou, para quem preferir, o capitalismo) não é o paraíso. Não é de estranhar que isso nem sempre tenha sido bem compreendido pelos seus teóricos. O capitalismo industrial estava mudando o mundo com tal velocidade (pense-se no ditirâmbico entusiasmo de Marx a respeito) que o lado ruim não parecia mais que "acidente de percurso".

Mas, com o tempo, passaram a perceber-se algumas limitações. Vejamos algumas das mais importantes:

(1) o mercado ocupa-se essencialmente dos bens que podem ser objeto de transações entre agentes econômicos, vale dizer, que têm valor de troca; se isso coincide ou não com valores de outra ordem, culturais, humanísticos ou o que seja, depende do que as partes queiram;
(2) o mercado tem também certa tendência a dar mais ênfase ao curto prazo, ou, como diríamos em economês, aplica uma taxa de desconto alta ao fator tempo; dessarte, a rentabilidade imediata é frequentemente preferida à de longo prazo;
(3) além disso, ele é uma arena implacável: a vantagem vai para quem produza mais e melhor a menores custos; o princípio da eficiência predomina sobre os aspectos distributivos - o que muita gente acha alienante e desumano;
(4) o mercado é inerentemente sujeito a perturbações cíclicas, ou seja, o processo de volta ao equilíbrio não é tão rápido que torne pouco significativos os fenômenos de recessão, falência e desemprego que podem acontecer durante o período de ajustamento.

Apesar de tudo, é o sistema que até hoje melhor conseguiu atender ao tríplice objetivo da liberdade política, eficiência econômica e progresso social.

Haveria outros pontos interessantes, mas esses quatro nos bastam, porque contêm a essência das críticas de Marx ao capitalismo. Marx foi uma poderosa cabeça, além de um espírito humanista. Sua análise contundente do capitalismo teve um imenso impacto no pensamento ocidental, e contribuiu para alertar os economistas para uma visão voltada para o mundo real, que a fascinação pela elegância matemática por vezes fazia esquecer.

A essa altura, porém, o marxismo descarrilou. Marx - tão sério que certa vez disse: "eu sou Marx, não marxista" - via o mundo em termos de uma concepção dialética da história, que considerava científica. Não estava, na verdade, interessado na economia, e muito menos na "mecânica" do seu funcionamento. Não tinha, por exemplo, nenhuma noção da escassez, que é o primeiro dos fenômenos econômicos. Ou antes, julgava que a questão já havia sido resolvida pelo progresso trazido pelo capitalismo (numa rara vez em que se deteve no problema, Marx disse que, se existisse o estado de escassez, não adiantava fazer-se a redistribuição que se quisesse, pois continuaria "die ganze alte Sheisse" -toda a velha merda...).

Assim, não havendo escassez, quaisquer imperfeições sociais, como o desemprego e a miséria, seriam exclusivamente resultado da má distribuição. E aí, dá o grande salto mortal teórico: imaginou o socialismo como um regime que, tendo abolido a propriedade dos meios de produção pela expropriação revolucionária, estabeleceria automaticamente a
solidariedade e a abundância universais. Nada mais fácil do que chegar lá, pensava Marx.

A história se encarregaria de fazê-lo automaticamente, pelo seu processo dialético. Bastaria apressar um pouco as coisas... Marx jamais inquiriu sobre o funcionamento de um regime socialista. Já que o socialismo chegaria de qualquer maneira, trazido pela necessidade histórica, e que, por definição, estavam superadas a escassez e os conflitos sociais, por que estudar aborrecidos detalhes de funcionamento ?

Quando, depois da Revolução de 1917, chegou a hora de desenhar a máquina socialista do futuro, nada havia nas escrituras marxistas. Lenin, no fim da vida, nos seus acessos de rabugice, reclamava disso.

O desastre inicial obrigou a uma política de liberalização, mas Stalin, espírito sem grandes "finesses" teóricas (ou quaisquer outras, aliás), fixou-se em três pontos: a ditadura do proletariado (transformada em ditadura do Partido); a coletivização forçada do campo e a concentração nas indústrias pesadas (o setor da "reprodução ampliada").

E alguns resultados, lá isso conseguiu. Retomou a industrialização rápida que vinha ocorrendo espontaneamente nas últimas décadas do império tzarista. E, nesse processo, matou milhões de pessoas e pôs em campos de concentração outras tantas (o total de vítimas pode ter sido da ordem de 50 milhões!).

Após a Segunda Guerra, a URSS continuou embalada, até a primeira metade dos anos 60, no período da "recuperação bruta". Engasgou depois, presa na herança de ineficiência e corrupção do mais brutal terrorismo totalitário jamais conhecido.

Enquanto isso, o capitalismo avançou. Formidáveis instrumentos estatísticos e matemáticos e técnicas de otimização foram desenvolvidos. "Redes de segurança" contra os efeitos do desemprego, instrumentos contracíclicos e técnicas de transferência redistributiva contribuíram para amortecer o impacto de perturbações conjunturais e câmbios estruturais.

Mas essas intervenções regulatórias e alocativas do Estado acabaram se revelando bem menos precisas e eficazes do que se imaginava no entusiasmo das grandes inovações do pensamento econômico, a partir dos anos 20. Novas tendências liberalizantes impuseram-se, a partir da década de 80, como resultado da experiência confirmada de que o Estado é um mecanismo ineficiente para quaisquer tarefas que impliquem a livre satisfação das demandas.

Enquanto o mercado corrige imediata e automaticamente os erros e a incompetência, no Estado isso se faz (quando se faz) depois de muitas voltas e delongas e ao custo de novas formas de dominação, inimaginavelmente piores que o mais rude capitalismo do século 19.

Nesse momento de delírio de resistência à modernidade pelos interesses corporativos e clientelísticos e pela espuma ideológica do esgoto da história, paremos para pensar: por que todos os países socialistas resolveram liberalizar-se economicamente, e por que os socialistas europeus - inclusive a "Pátria do Socialismo" - expeliram os seus regimes com tamanha revulsão que chegaram ao ponto de preferir a desintegração física ?

O Brasil, sob o ponto de vista da economia e do Estado, é uma versão carnavalesca da retórica socialista. O máximo que se pode dizer é que é pré-capitalista. Será que queremos esse conúbio espúrio da falsa esquerda com os gigolôs do Estado acastelados nos monopólios ?

Isso não pode durar, porque o leite da vaca Brasil está secando, e o povão quer, além da liberdade política, a liberdade econômica que traz eficiência e bem-estar.

ROBERTO CAMPOS, 77, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPR do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de A Lanterna na Popa (Ed. Topbooks, 1994).

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