sexta-feira, 30 de abril de 2010

109) Grande Sertão: Veredas - João Guimarães Rosa - pensamentos seletos.

"Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas"

108) Plágios, tradutores e autores (ou variações de Kafka).


Plágios, tradutores e autores

Denise Bottmann, tradutora brasileira, tem agitado as águas pardas da melancolia editorial brasileira. Descobriu que uma prática infeliz de alguns editores brasileiros consiste em reeditar traduções antigas, mudando o nome do tradutor — para um nome fictício ou não, não interessa — fingindo tratar-se de nova tradução.

Não fosse o tradutor nos países de língua portuguesa (Portugal incluído) considerado um moço de recados, e esta prática seria naturalmente inaceitável e impugnável em tribunal. Pois imagine-se o que seria eu, como editor, pegar num romance qualquer com trinta ou quarenta anos (ou duzentos anos!), e que caiu no esquecimento, reeditá-lo e... tirar o nome do autor e enfiar-lhe outro nome qualquer. Evidentemente, num caso destes, o crime intelectual seria evidente. Já no caso dos tradutores as pessoas assobiam para o ar e fingem que está tudo bem.

Do meu ponto de vista, isto deve-se ao estatuto absurdo que tem o tradutor em Portugal e no Brasil, ao contrário do que ocorre em França ou na Inglaterra: na lusofonia, o tradutor não é considerado um autor, o que é inaceitável. Os nomes dos tradutores de países culturalmente mais sofisticados vêm na capa dos livros, e os tradutores têm direitos intelectuais sobre a sua tradução: são co-autores, juntamente com o autor original. É um trabalho intelectual criativo, único, irrepetível. E que dá muito, muito trabalho, para ser bem feito. É inaceitável usar o trabalho de um tradutor, eliminando-lhe o direito de autoria.

Do meu ponto de vista, já que as práticas editoriais fraudulentas, denunciadas pela Denise, são infelizmente muitas, é preciso legislar para proteger o tradutor. E um passo importante nessa direcção é passar a ser obrigatória a menção do nome do tradutor na capa de todos os livros traduzidos.

Denise tem sido perseguida pelos editores cujos plágios ela provou no seu blog. Dois editores brasileiros levantaram-lhe processos em tribunal — isto é kafkiano, pois é como um ladrão que levanta um processo ao jornalista que lhe denunciou os trabalhos nocturnos. Leia o blog da Denise e, caso concorde, assine esta petição. É tempo de pôr cobro a estas práticas.

107) Celso Amorim - entrevista ao Estadao.





Segue, abaixo, a entrevista dada por Celso Amorim a Roberto Simon e publicada por O Estado de São Paulo a 25 de abril de 2010. Retirei-a do Diplomatizzando. Posposto, um comentário depreciativo sobre nosso atual Ministro de Estado das Relações Exteriores. Não faria comentário público de  mesma natureza ao de Alberto Martinet, inclusive por não ter como avaliar sua justiça e por acreditar que não devam figurar em debate público ataques de cunho pessoal. Publico, no entanto, o comentário para evidenciar: i) que uma autoridade desse nível hierárquico nunca condenaria uma política cuja implementação fosse de sua responsabilidade e é compreensível que, sendo "um filho seu", quisesse ressaltar as qualidades que atribui a ele e a buscar tirar de foco seus defeitos, sobretudo um diplomata que, como certa vez vi Roberto Campos afirmar, "é um sujeito pago para esconder com palavras o pensamento"; ii) as alianças políticas que esta autoridade apresenta indícios de fazer; iii) questões de status, de prestígio, de influência, na outorga da comenda da Ordem do Rio Branco à mulher daquele de maior hierarquia no Itamaraty. 

Refiro-me a estes aspectos sem qualquer tom pejorativo. Quanto ao último, é só mais um caso dentro da burocracia brasileira, porém de grande interesse sociológico.

Vinícius Portella

Porto Alegre,

30 2106 abr 2010. 


Celso Amorim - entrevista ao Estadao

''É um absurdo achar que o Brasil é pró-Irã ou que está isolado''
Roberto Simon



O Estado de S.Paulo, 25 de abril de 2010


Chanceler brasileiro defende posição do País na crise hondurenha, fala sobre sua filiação ao PT e rebate as críticas de que o governo Lula partidarizou a diplomacia brasileira

Ele está a 132 dias de bater o recorde de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, maior mito da diplomacia brasileira. Quando terminar o governo Lula, Celso Amorim será o chanceler que mais tempo esteve à frente do Itamaraty. Em entrevista ao Estado, ele defendeu a posição do Brasil durante a crise hondurenha, falou sobre sua filiação ao PT e disse que estão "equivocados" os que acham que o País está isolado na questão nuclear iraniana. A seguir, os principais trechos da conversa com o chanceler brasileiro.




Por que o sr, diplomata de carreira e chanceler, decidiu se filiar ao PT?


Estou terminando minha gestão no Itamaraty. Sou diplomata aposentado, além do mais. Mas aposentadoria não é a morte. Interesso-me por política - isso não significa que serei candidato. Se quisesse, teria sido agora. Quero ter um envolvimento na política e me identifico mais com o PT. A maioria dos meus antecessores, com exceção do governo militar, pertenciam a partidos.




Mas não diplomatas de carreira.


Não penso assim. Veja meu antecessor, Celso Lafer. Foi tesoureiro de campanha do PSDB. Roberto Campos, diplomata de carreira, não foi chanceler, mas foi ministro. Sinceramente, isso é um não-assunto.




O sr. seria chanceler em um eventual governo Dilma Rousseff?


Não sei, não tenho mais ambições. Pretendo levar da melhor maneira esse período final do governo, ao qual me orgulho de ter servido.




Seus críticos reclamam da ''partidarização'' da diplomacia, dizem que a agenda do PT está ofuscando tradicionais objetivos do Itamaraty.


Primeiro, o governo não é só o PT, mas o PT dentro de uma coligação. Eu, aliás, fico muito satisfeito quando vou ao Senado e à Câmara e - tirando esse período eleitoral - recebo muitos elogios.




Mas, da última vez, dois da membros oposição bateram boca com o sr.


É porque estamos em ano eleitoral. Respeito a opinião dos outros, não estou dizendo que estão certos ou errados. Há alguma diferença de concepção quanto à diplomacia, mas a maior distinção é que nós não nos limitamos a falar. Nós fizemos.




Há reclamações de uma afinidade excessiva da atual política externa com países como Venezuela e Cuba. O sr. discorda?


Não vejo isso de maneira tão dramática. Fui ministro do presidente Itamar (Franco) e levei a Cuba uma carta dele sobre certos temas. O próprio governo Fernando Henrique Cardoso teve uma cooperação razoável com Cuba.




Agora parece ser diferente. Na última visita a Havana, Lula comparou prisioneiros de consciência cubanos como criminosos comuns brasileiros.


Já comentei o que tinha de comentar a esse respeito. O presidente fez uma autocrítica em relação à greve de fome que fez em São Bernardo. Agora, cá entre nós, quando houve greve de fome na Irlanda do Norte ninguém nos pediu para romper com a Grã-Bretanha. Há maneiras de agir. É muito fácil fazer condenações e colocar um diploma na parede. O difícil é contribuir efetivamente para uma melhora.




Mas, ao comparar presos de consciência com criminosos comuns, o presidente não dá um voto de legitimidade ao sistema cubano?


Não vejo que ele tenha feito a comparação entre uns e outros. O presidente comparou situações. Cada um tem seu estilo, suas metáforas.




Outra frase do presidente Lula que marcou muito foi a de que os protestos, no Irã, contra a eleição de junho, eram "choro de perdedor, como uma coisa entre vascaínos e flamenguistas".


Vocês querem que eu comente o estilo do presidente. Esse estilo é apoiado por 85% dos brasileiros. O que interessa é que o Brasil não vai intervir em um tema interno iraniano e irá se relacionar de Estado para Estado com o Irã.




Mas, novamente, não foi uma intervenção? Não estaria Lula legitimando uma eleição amplamente contestada?


Não acho, de forma nenhuma, que seja uma intervenção. Reflete a experiência dele diante de coisas que assistiu no Brasil. Seria muito pretensioso, nesse caso específico, achar que teríamos alguma influência. O que temos procurado trabalhar com o Irã é o caso do dossiê nuclear.




Antes de falar sobre o programa nuclear, o sr. considera a questão de direitos humanos no Irã um empecilho para a aproximação do Brasil com Teerã?


O ideal é que o mundo todo fosse feito de democracias. De preferência com um componente social, como a nossa. Mas não é assim. Não vou responder a sua pergunta como você quer e a recoloco: a ausência de democracia é empecilho para os EUA - país que seu jornal mais admira, e eu também - estabelecer relações com alguém? Pergunte a um ministro americano se ele pensa em romper laços por causa de violações de direitos humanos.




O caso iraniano é bem particular. O Irã caminha desde junho para uma ditadura brutal, com repressão na rua e a Guarda Revolucionária tomando de assalto o país. Nesse contexto se dá a aproximação brasileira.


Não vejo da forma que você coloca. O Irã é formado por circunstâncias diversas, que vêm desde a traumática ruptura com os EUA.




Sobre o dossiê nuclear do Irã, há em paralelo um programa balístico e todos sabem que Teerã fez uma usina secreta em Qom...


Não defendemos nada disso. Queremos o que (o presidente Barack) Obama defendia até pouco tempo, mas parece estar desiludido. Tudo isso que você estava enumerando já existia. O que há de novo é uma proposta da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) para a troca de urânio levemente enriquecido por elementos combustíveis para o reator de pesquisa de Teerã. Achamos que ainda é possível trabalhar sobre a proposta - assim como os turcos, membros da Otan e vizinhos do Irã, provavelmente os últimos a querer uma bomba iraniana. Chamam-nos de ingênuos, mas acho muito mais ingênuos os que acreditam em tudo o que o serviço de inteligência americano fala. Veja o caso do Iraque. O último relatório da AIEA sobre o Irã não traz fato novo. O que tem é um novo tom, pois mudou o diretor-geral. Converso com muita gente e não vejo o Irã perto de fazer uma bomba. A maioria dos analistas tampouco acredita que isso está próximo.




O artigo de capa da última "Foreign Affairs", prestigiada revista de especialistas, diz exatamente o oposto.


Mas isso virou uma polêmica ideológica. Um artigo publicado nos EUA colocava a estimativa mínima entre três e cinco anos para se obter uma bomba. Supondo ainda que eles queiram fazer. Não estou dizendo que eles querem ou não. Mas é possível fazer um acordo que dê conforto relativo - pois absoluto não há - de que o Irã não terá um arsenal nuclear mínimo a médio prazo, ao mesmo tempo respeitando o direito iraniano de ter energia nuclear para fins pacíficos. É absurdo achar que o Brasil é pró-Irã. Veja o que diz (Thomas) Pickering, que trabalhou com a (ex-secretária de Estado dos EUA) Madeleine Albright, ou o (ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Zbigniew) Brzezinski. Outro dia até o Estadão publicou um artigo - fiquei feliz - defendendo a mesma coisa que nós. Dizer que Pickering é pró-Irã é estar no mundo da Lua, sinceramente.




Ahmadinejad fechou um acordo com AIEA e depois recuou. Como o sr. vê esse vaivém?


Os EUA também chegaram a condenar Honduras na OEA e depois recuaram, porque senadores não confirmavam um embaixador.




São situações comparáveis?


Claro que não. Estou dizendo que em todos os lugares há posições variadas. O Irã, independentemente do julgamento de valor, certamente tem um sistema político plural.




Não é o que pensam os dissidentes iranianos, sobretudo desde junho.


Um dos primeiros a condenar o acordo com a AIEA foi o (líder da oposição Mir Hossein) Mousavi. O Irã tem um sistema plural, apesar de todas as suas limitações. Não estou falando que é a democracia pluralista que queremos. Acho, honestamente, que o Irã devia ter aceito a oferta da AIEA que permitia o enriquecimento. Mas não é porque recusaram que diremos "então está bem, vamos para guerra". Ou "vamos para sanções", que podem não ter efeito ou punir a população.




Então, se uma resolução nos atuais termos vier, o Brasil votará contra.


Não darei essa informação. Ainda temos de analisar.




O vice-presidente José Alencar afirmou que uma bomba iraniana só teria fins defensivos. O sr. concorda?


Você só me pergunta sobre o que os outros dizem (risos). Respeito muito o vice-presidente e não comentarei. Surpreende-me a falta de informação. Achar que o Brasil é pró-Irã ou que está isolado é totalmente falso. Nem deveria invocar esses exemplos, mas como é tão importante para um certo grupo da elite brasileira saber o que os outros pensam... Outro dia na TV disseram que Honduras foi um "tropeço" nosso. Não vejo absolutamente nenhum tropeço nesse caso. Aliás, nossas posições públicas foram iguais às dos EUA. Eles nunca abriram a boca para nos criticar por dar abrigo ao (presidente Manuel) Zelaya. Só a mídia nacional e alguns políticos fizeram isso.




Hoje, olhando para trás, o sr. avalia que a decisão de abrigar Zelaya beneficiou a crise hondurenha?


Foi corretíssima, positiva para a coerência do Brasil. É espantoso que jornais que foram obrigados a publicar receita de bolo em suas páginas por causa da censura de um governo militar achem justificável um golpe de Estado. Isso me espanta. Houve um erro e não devemos permitir que ele sirva de exemplo. Aliás, mutatis mutandis, o golpe hondurenho se assemelha muito ao de 1964. Todo mundo diz que o Brasil cometeu um fiasco, como se não fosse correto dar abrigo a um presidente legitimamente eleito, tirado de sua casa na ponta de um fuzil.




Nenhum grande jornal do Brasil defendeu o golpe. Para o "Estado", o novo regime era "governo de facto". O que se questionou foi, por exemplo, o fato de Zelaya convocar uma "insurreição" - foi essa a palavra usada - de dentro da embaixada brasileira.


O que você queria que eu fizesse? Pegasse o Zelaya e botasse na rua? Aí sim teríamos uma chance de guerra civil. Chegamos para ele e dissemos "você fica, mas não fale mais isso". Eu, pessoalmente, disse a ele: "Presidente, por favor não use a palavra morte". E ele respeitou. Enviados americanos iam à embaixada brasileira falar com Zelaya. Só se chegou a uma conclusão - que, certamente, não foi a ideal - porque abrigamos Zelaya.




Recentemente, a revista "Foreign Policy" afirmou que o sr. é o "Henry Kissinger brasileiro". Como o sr. vê a comparação?


Não tenho o brilhantismo do professor Kissinger (risos). E ainda acho que sou um pouco mais idealista do que ele.




COMENTÁRIOS PARA ESTE POST 


1 Alberto Martinet
25 DE ABRIL DE 2010
Quanta má fé na fala desse asqueroso personagem! Ele é «escorregoso feito bagre ensaboado», foge das questões, elude os assuntos que não lhe interessam.
Bajudador (é dele a expressão «Nosso Guia», aplicada ao Lula), costuma se esgueirar em terreno minado e, como seu mentor, tem conseguido tirar vantagem de situações conflitantes. Mudou várias vezes sua visão política do mundo, conforme os diferentes Senhores a quem serviu.
Acaba de fazer vistas grossas ao fato de sua esposa ser agraciada com a maior distinção outorgada pela Diplomacia brasileira: a Ordem do Rio Branco, no grau Grã-Cruz.
Homem sem consistência. Coração pequeno e espinha flexível. Mesquinho e desprezível. Está entre aqueles que serão tragados e triturados pelo caminhão de lixo da História.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

106) Pequenas empresas aprendem a exportar no Rio de Janeiro.


Pequenas empresas aprendem a exportar no Rio de Janeiro.

28/04/2010 09:27 - Portal Brasil
Pequenas empresas da região serrana do Rio de Janeiro recebem a partir desta quarta-feira (28) um curso gratuito sobre internacionalização dos negócios. A capacitação é uma prévia do Programa Primeira Exportação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) que será lançado em maio no Rio, dentro do programa mais amplo Rio Expoint.
O curso é realizado em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Rio de Janeiro (Sedeis). Segundo o superintendente de Projetos Especiais da instituição, Nassim Mehedff, o Primeira Exportação tem o objetivo de apoiar micro, pequenos e médios empresários que já exportaram e pararam a atividade por alguma razão ou que querem entrar nos mercados internacionais.   
“Nesses dois dias de curso, eles vão entender todo o processo, as idéias iniciais do que significa exportar e internacionalizar as empresas das quais são proprietários”. No fim do curso, aqueles que optarem por assinar o termo de compromisso de participação no projeto poderão cumprir novas etapas que durarão até oito meses, “até que os empresários cheguem ao ponto de exportar corretamente”, disse o superintendente. 
Os pequenos empresários aprendem a fazer desde o diagnóstico das empresas para melhorar sua qualificação técnica, até providenciar aspectos legais e de financiamento.  O primeiro curso será realizado no Laboratório de Informática da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e dará ênfase às empresas do setor metalmecânico, fornecedor da cadeia de petróleo e gás do Rio, e  de tecnologia da informação. 

105) As cotas para negros e a desigualdade brasileira, por Fernando Abrucio.


O sucesso das políticas públicas depende da definição clara dos problemas que elas querem combater, bem como da adoção de medidas que acertem o alvo correto. Essa pequena digressão técnica é necessária para tornar mais preciso um debate que está no centro da agenda pública: a questão das cotas para negros em universidades. Para que serviria essa política discutida hoje de forma tão radical? Com certeza ela não seria capaz de atenuar o sofrimento dos negros durante a escravidão.

Quanto a isso, o máximo que podemos fazer é lembrar sempre dessa mácula da história brasileira. É importante frisar isso porque alguns revisionistas têm argumentado que a população negra não sofreu tanto assim, pois alguns dos africanos foram traficantes e, outros, quando libertos, logo compravam seu “escravinho”. Há ainda a tese, arrancada à força do pensamento de Gilberto Freyre, de que a convivência entre brancos e negros fora “pacífica”. Afinal, milhares de estupros foram “consentidos”.

Tais analistas produziram uma grande falácia lógica. A existência de alguns escravos traficantes ou compradores de outros indivíduos de sua cor não elimina a existência de um brutal sistema opressor contra milhões de pessoas. Foi contra isso que os abolicionistas se insurgiram. Creio que nossos intelectuais revisionistas talvez fossem à época contra a abolição, porque “tudo estava bem no Brasil da miscigenação”. Em sua argumentação, esse revisionismo não é diferente do praticado por historiadores que desmentem a existência do Holocausto por encontrarem a existência de um ou outro judeu que apoiou o nazismo.

Apresentar o debate da escravidão de forma completamente distorcida não ajuda o debate das cotas. Não que as desigualdades atuais sejam fruto apenas da escravidão. É bem provável que muito da situação atual se explique pela falta de políticas no pós-escravidão. Mas um fato é evidente nos estudos empíricos: há desigualdade entre brancos e negros com mesma situação de renda e escolaridade.

Muitos estudos econométricos mostram que, em contexto social similar, os negros têm pior desempenho escolar que os brancos. Recentemente, coordenei uma pesquisa sobre escolas públicas e um dos pesquisadores presenciou o que só conhecíamos por estatística. Numa sala de aula com alunos em situação equivalente de pobreza, havia uma divisão na qual, de um lado, ficavam os brancos e, de outro, os negros. Isso se repetia no intervalo. Pior: o tratamento docente era francamente favorável aos brancos. Conversamos com a professora e com a diretora: nenhuma delas havia percebido essa discriminação. Um racismo tão invisível e enraizado é difícil de combater apenas com políticas iguais para todos. Para questões como essa, deveria valer a máxima de tratar desigualmente os desiguais para alcançar a justiça social.
Um racismo tão invisível e enraizado é difícil de 
combater apenas com políticas iguais para todos
Não pense, leitor, que o problema está resolvido, pois a forma como for feita a política afirmativa, termo mais correto que cotas, afetará os resultados. Cotas muito amplas e sem nenhum critério de mérito não podem ser um desestímulo para o estudo dos negros? Ademais, o cotismo não poderia se transformar numa política racialista que geraria uma tensão inexistente em nossa sociedade? São perguntas fundamentadas (e não ideológicas) em termos de políticas públicas.

Para elas, deve haver respostas ainda no terreno das políticas afirmativas. É possível ter cotas mais controladas do ponto de vista do tamanho e do mérito, inclusive com ações de ajuda aos negros já nos ciclos escolares anteriores, uma vez que a maioria deles fica no meio do caminho e nunca será cotista. Quanto ao possível acirramento racial, ele não tem acontecido nas universidades com cotas. Uma legislação e um debate equilibrados poderiam conter isso.

Há dois outros grandes benefícios que uma política cotista equilibrada produziria. O primeiro é aumentar a autoestima dos negros, por meio da constituição de novas lideranças lastreadas na escolaridade. Além disso, teríamos uma maior diversidade em nossas melhores universidades, onde os negros são raríssimos. Se tivéssemos tal diversidade no meio das elites, a discussão da escravidão não teria sido retomada de forma tão leviana e inconsequente.

terça-feira, 27 de abril de 2010

104) The Mathematics of Logic, de Richard Kaye.


Cambridge: Cambridge University Press, 2007, 216 pp.

Richard Kaye é o autor deste exigente manual avançado de lógica moderna, apresentado do ponto de vista algébrico. A sua complexidade torna-o, paradoxalmente, um manual extremamente interessante para o leitor já experiente no material canónico da maioria dos livros introdutórios de lógica. Isto deve-se tanto ao facto de Kaye avançar decididamente para a exposição de resultados metalógicos, que normalmente não fazem parte do material canónico das introduções à lógica, quanto ao facto de Kaye optar pela apresentação do material em lógica algébrica, abordagem que também não é comum na maior parte dos manuais. Recorde-se, porém, que uma das primeiras apresentações em língua portuguesa da perspectiva algébrica do cálculo proposicional se deve ao Professor Francisco Miraglia, da Universidade de São Paulo, no seu livro Cálculo Proposicional: Uma Interação da Álgebra e da Lógica(CLE, Unicamp, 1987).
No Prefácio, Kaye expõe sumariamente a sua concepção da lógica:
“A característica principal da lógica é que deve ser acerca do raciocínio ou da dedução, deve tentar fornecer regras para as inferências válidas. Se estas regras forem definidas de forma suficientemente precisa (e devem sê-lo), tornam-se regras para a manipulação de séries de símbolos numa página. O passo seguinte é adicionar significado a estas séries de símbolos e tentar apresentar uma justificação matemática para as regras de inferência. Tipicamente, apresenta-se dois teoremas distintos: o primeiro é o “Teorema da Consistência”, que diz quenenhuma dedução incorrecta pode ser feita a partir das regras de inferência; o segundo é o “Teorema da Completude”, que diz que todas as deduções correctasque podem ser expressas no sistema podem de facto ser feitas utilizando uma combinação das regras de inferência fornecidas” (p. VIII).
É deste modo que Kaye justifica o seu objectivo principal: a compreensão do conteúdo matemático do teorema da completude da lógica de primeira ordem, cuja demonstração original, publicada em 1930, se deve ao maior lógico do século XX, Kurt Gödel. Para o leitor principiante, convém não confundir este teorema da completude da lógica de primeira ordem com o teorema da incompletude da aritmética formal, também de Gödel e publicado em 1931, e que é o seu resultado mais famoso: a existência de proposições verdadeiras mas indemonstráveis no sistema formal da aritmética — o chamado primeiro teorema da incompletude — e a impossibilidade de demonstrar a consistência da aritmética formal com os próprios meios desse sistema formal — o chamado segundo teorema da incompletude.
A partir do Teorema da Completude, e especificamente da sua demonstração, Kaye encontra técnicas matemáticas relevantes para a construção de novas estruturas matemáticas:
“Assim, a lógica não é apenas acerca de conectivas como “e” e “ou”, apesar de os sistemas principais, incluindo a lógica proposicional e a lógica de primeira ordem, terem símbolos para estas conectivas. O poder da técnica lógica para o matemático surge do modo como o sistema formal de dedução pode ajudar a organizar um conjunto complexo de condições que podem ser exigidas numa construção ou demonstração matemática. O Teorema da Completude torna-se uma forma muito geral e poderosa de construir estruturas matemáticas interessantes. Um exemplo típico é a aplicação da lógica de primeira ordem à construção de sistemas numéricos com infinitesimais, que podem ser utilizados rigorosamente para apresentar o cálculo real. É a chamada análise não canónica de Abraham Robinson, e é apresentada no último capítulo deste livro” (p. IX).
Ao centrar o seu manual na questão da completude da lógica de primeira ordem, Kaye, ainda que implicitamente, toma partido no conhecido problema da determinação das fronteiras da lógica, isto é, no problema de saber que teorias se deve considerar que pertencem ao âmbito da lógica, e que teorias se deve considerar que não pertencem ao seu âmbito. Em particular, o problema é distinguir a lógica da matemática, ou seja, de determinar que critérios possibilitam traçar uma linha divisória entre teorias lógicas e teorias não lógicas, isto é, matemáticas.
completude é efectivamente um desses critérios de demarcação entre lógica e matemática, e é, aliás, o critério também defendido pelos professores William e Martha Kneale, na obra O Desenvolvimento da Lógica, publicada entre nós pela Fundação Gulbenkian. Assim, segundo este critério, pertencem ao âmbito da lógica as teorias que sejam completas, como é nomeadamente o caso do cálculo proposicional e do cálculo de predicados de primeira ordem. Teorias completas são aquelas teorias em que, para qualquer fórmula bem formada a da teoria T, ou a é demonstrável em T, ou a sua negação, não-a, é demonstrável em T. Pelo contrário, as teorias que sejam incompletas, como é nomeadamente o caso da teoria de conjuntos ou da aritmética formal, já são teorias que não podem ser exaustivamente caracterizadas estabelecendo regras de inferência, pelo que estão fora do âmbito da lógica — são teorias matemáticas. Teorias incompletas são aquelas teorias em que não ocorre que, para qualquer fórmula bem formada a da teoria T, ou a é demonstrável em T, ou a sua negação, não-a, é demonstrável em T.
A decidibilidade, por exemplo, seria um critério alternativo da demarcação entre lógica e matemática mais estrito do que a completude: seriam parte da lógica apenas aquelas teorias que fossem decidíveis, como é nomeadamente o caso do cálculo proposicional. Teorias decidíveis são aquelas teorias para as quais existe um processo construtivo (isto é, executável num número finito de passos), para determinar, para qualquer fórmula bem formada a da teoria T, se existe uma demonstração de a em T. Pelo contrário, estariam fora do âmbito da lógica teorias indecidíveis, como é nomeadamente o caso, além da teoria de conjuntos e da aritmética formal, do próprio cálculo de predicados de primeira ordem, visto que embora existam processos de decisão para uma série de casos especiais da teoria da quantificação, não existe um processo geral de decisão para todo o cálculo de predicados de primeira ordem. Teorias indecidíveis são teorias para as quais não existe um processo construtivo para determinar, para qualquer fórmula bem formada a da teoria T, se existe uma demonstração de a em T.
Para Frege, claro, o problema não se colocava, visto Frege defender a inexistência de uma demarcação entre a lógica e a matemática. Segundo a sua tese logicista, a matemática é parte da lógica. Por exemplo, as noções da aritmética poderiam ser definidas em termos das noções requeridas para a lógica em geral, e as leis da aritmética poderiam ser derivadas dos princípios requeridos para a lógica em geral. Que o programa logicista não é exequível, pelo menos na sua formulação original, sabemo-lo graças a Bertrand Russell, que descobriu uma contradição no sistema de Frege (o chamado “paradoxo de Russell”).
Tentemos enumerar sinteticamente, e de modo não técnico, o material básico de cada capítulo, para se compreender a estrutura da obra.
Kaye dedica o Cap. 1 ao lema de König, depois de apresentar os conceitos prévios de árvore, árvore binária e árvore infinita. O lema de König assevera então que qualquer árvore binária infinita (com infinitos nós) tem pelo menos um ramo infinito. Este resultado é significativo, visto que Kaye explica assim tal papel central do lema de König:
“O teorema central deste livro, o teorema da completude para a lógica de primeira ordem, não só tem o mesmo “sabor” do Lema de König como é de facto uma generalização poderosa dele” (p. 6).
Aqui, ao contrário do que sucede noutros capítulos da obra, o formalismo matemático não é particularmente difícil, mesmo para um leitor não matemático.
No Cap. 2, Kaye introduz o conceito de “ordem” e chega, através do conceito de conjunto parcialmente ordenado (poset, no original inglês), ao lema de Zorn. O lema de Zorn diz-nos que qualquerposet tem um elemento maximal, desde que tenha a propriedade de Zorn, isto é, que cada subconjunto completamente ordenado dos seus membros tenha majorante, como explica Kaye na p. 15. De seguida, Kaye relaciona este lema de Zorn com o axioma da escolha (da teoria de conjuntos):
“Acontece que não apenas o axioma da escolha chega para provar o Lema de Zorn, mas também que a conversa é verdadeira: do Lema de Zorn pode demonstrar-se o Axioma da Escolha” (p. 16).
As demonstrações são então apresentadas (pp. 21-22). Conclui Kaye:
“A contribuição de Zorn parece ser a de fornecer um princípio útil e forte, que é equivalente a estes [o axioma da escolha e o princípio da boa ordem] e que pode ser facilmente utilizado em álgebra e noutros contextos, sem a terminologia problemática da teoria de conjuntos, que era na altura comum” (p. 22).
O Cap. 3 é dedicado ao conceito de “sistema formal”, procedendo Kaye à sua caracterização detalhada, bem como à exemplificação do mesmo:
“Os sistemas formais são tipos de jogos matemáticos com séries de símbolos e regras precisas. Imitam a ideia de uma “demonstração” ” (p. 24).
O estudo preciso de tais demonstrações, utilizando os símbolos e regras dos sistemas formais, dá origem a um dos ramos principais da lógica moderna, a teoria da demonstração:
“As derivações formais ou demonstrações são objectos matemáticos finitos, e como tal são objectos de uma teoria matemática. Isto deve-se ao facto de termos especificado exactamente que regras serão permitidas numa demonstração, e não termos deixado isso ao juízo subjectivo de outro ser humano. De facto, o ramo da lógica matemática chamado teoria da demonstração estuda as demonstrações como objectos matemáticos” (p. 26).
O capítulo quatro é dedicado às derivações com posets. Escreve Kaye:
“O ponto principal do capítulo é ilustrar os métodos nucleares da lógica, dos sistemas formais e da semântica” (p. 48).
Introduzem-se aqui numerosos exemplos de demonstrações formais, bem como a regra da reductio ad absurdum, para posteriores utilizações. A completar cada capítulo, e este não é excepção, surgem, assinaladas com asterisco, secções opcionais, com material ainda mais avançado e de maior complexidade conceptual, bem como, por vezes, de grande exigência no formalismo matemático.
No Cap. 5, Kaye expõe álgebras de Boole e introduz conceitos como o de “reticulado” (lattice):
“Conjuntos parcialmente ordenados e linearmente ordenados podem ser interessantes, mas não são verdadeiramente “lógica” no sentido usual da palavra: não representam enunciados lógicos nem são modelos de operações lógicas, como “não”, “e”, ou “ou”. Vamos agora investigar tipos especiais deposets chamados álgebras de Boole, cujos elementos podem ser utilizados para representar proposições lógicas” (p. 55).
O estudo da lógica do ponto de vista algébrico foi iniciado por George Boole, ainda antes do trabalho de Frege. Interessantemente, a secção final opcional deste capítulo (pp. 61-63) consiste na distinção que se pode estabelecer entre a álgebra de Boole moderna e a inicial, tal como George Boole a apresentou nos livros The Mathematical Analysis of Logic (1847) e An Investigation of the Laws of Thought (1854). Por exemplo, Boole nunca estipulou um conjunto completo de axiomas para a sua álgebra, nem utilizou símbolos para “e” e “ou”, mas antes as operações da multiplicação e da adição.
No Cap. 6, intitulado “Lógica Proposicional”, o que se vai construir é então um sistema formal para demonstrações com álgebras de Boole, concluindo-se o capítulo com uma secção opcional onde Kaye apresenta o teorema da decidibilidade da lógica proposicional. A abordagem algébrica é uma opção constante de Kaye, e, a meu ver, torna o seu livro significativamente mais difícil para os leitores cuja formação de base não seja a matemática.
O Cap. 7, intitulado “Valorações” (Valorations), consiste na construção de uma semântica para o cálculo proposicional, com a introdução de tabelas de verdade, a partir do material de álgebra de Boole anteriormente apresentado. Como escreve Kaye:
“Utilizámos as álgebras de Boole para representar o material mais tradicional da “lógica proposicional” ” (pg. 90).
Podemos preferir a apresentação tradicional deste material à abordagem algébrica, sobretudo porque é intuitiva e mais didáctica. Kaye, porém, pensa diferentemente, com base na maior aplicabilidade matemática deste tipo de ponto de vista.
Segue-se o Cap. 8, um dos mais difíceis da obra, a meu ver, acerca de filtros e ideais, incluindo a apresentação de conceitos como o de “homoformismo”, que conclui com duas secções opcionais uma acerca do teorema de Tychonov (que envolve espaços topológicos) e outra acerca do teorema da representação de Stone, que estabelece um isomorfismo entre as álgebras de Boole e álgebras de conjuntos.
Finalmente, no Cap. 9 entra-se na lógica de primeira ordem, o tradicionalmente chamado cálculo de predicados. A sua importância é adequadamente assinalada por Kaye:
“A lógica proposicional é a lógica das afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas, ou que tomam algum valor numa álgebra de Boole. A lógica da maior parte da argumentação matemática envolve mais do que isto: envolve objectos matemáticos de um ou outro domínio, tais como o conjunto dos números naturais, números reais, números complexos, etc. Se introduzirmos tais objectos no nosso sistema formal para demonstrações, obtemos aquilo que é conhecido como lógica de primeira ordem, ou lógica predicativa.
Tal como acontece com qualquer uma das nossas outras lógicas, a lógica de primeira ordem não seria tão interessante se fosse apenas um sistema para escrever e verificar mecanicamente demonstrações formais de um domínio particular do trabalho matemático. Mas, felizmente, pode ser interpretada numa classe bastante geral de estruturas matemáticas, e a teoria de tais estruturas é uma espécie de teoria algébrica generalizada, que se aplica igualmente bem a grupos, anéis, campos e muitas outras estruturas familiares, pelo que a lógica de primeira ordem pode ser aplicada a um domínio amplo de áreas da matemática” (p. 116).
Kaye trata então de apresentar o material predicativo, com as suas regras específicas e demonstrações dos principais resultados, seguindo-se uma secção opcional final acerca de lógicas de segunda ordem e superiores, em que a quantificação não se limita a elementos de um domínio (não vazio), mas também inclui predicados e classes.
O Cap. 10 é o capítulo nuclear do livro: aí se apresentam e demonstram os teoremas da completude e da compacidade da lógica de primeira ordem, através de um método que se deve ao lógico Leon Henkin (a “henkinização”). Em rigor, trata-se de metateoremas, visto que fazem parte da metalinguagem acerca da linguagem objecto, que no caso é uma lógica de primeira ordem.
Não se apresenta, contudo, o resultado negativo para a decidibilidade da lógica predicativa, cuja demonstração se deve a Alonzo Church, em 1936. A indecidibilidade do cálculo de predicados de primeira ordem é, aliás, um dos mais importantes resultados de outro ramo fundamental da lógica moderna, a teoria da computabilidade.
O Cap. 11 onze é dedicado a outro ramo essencial da lógica moderna — a teoria dos modelos. Com a teoria da demonstração e a teoria da computabilidade, estes são os três principais ramos da lógica moderna (admitindo que a teoria dos conjuntos não faz parte do universo da lógica e pondo de lado a lógica intuicionista, iniciada por Brouwer). É outro capítulo complexo e difícil, onde Kaye também aborda a cardinalidade de conjuntos infinitos e o contributo de Cantor, com a teoria dos números transfinitos, bem como o ideal subjacente ao programa de Hilbert:
“Era uma espécie de Santo Graal da lógica do início do século XX encontrar um sistema de demonstrações para toda a matemática, ou para grande parte dela, como por exemplo a teoria dos números ou a teoria dos conjuntos, que fosse completo para a sua própria linguagem. Tal sistema, em princípio, colocaria os matemáticos no desemprego, sendo substituídos por um computador a produzir os teoremas. Que este Graal é de facto inatingível foi mais tarde demonstrado por Gödel, em 1931. Contudo, durante a procura de tais teorias, algumas pessoas, tais como Tarski e Hilbert, encontraram sistemas interessantes de primeira ordem que eram completos para as suas (limitadas) linguagens” (p. 171).
Também o Cap. 12, o capítulo final, acerca da análise não canónica, é um capítulo sofisticado. Escreve Kaye:
“Os teoremas da completude e da compacidade para a lógica de primeira ordem são interessantes do ponto de vista dos fundamentos da matemática, que é aquilo para que originariamente se destinavam, mas também fornecem uma caixa de ferramentas lógicas poderosas, que pode ser aplicada a outras áreas da matemática. Uma das mais excitantes aplicações dos teoremas da completude e da compacidade é a descoberta de Robinson de que podem ser utilizados para conferir um sentido perfeitamente rigoroso à ideia de número infinitesimal e para utilizar infinitesimais para apresentar o material da análise tradicional, incluindo a continuidade e a diferenciabilidade. Robinson chamou ao seu método “análise não canónica” ” (p. 182).
A concluir o livro existe um índice remissivo de nomes e conceitos (pp. 200-204), bem como uma bibliografia básica (p. 199). Do índice de nomes, aliás, não consta sequer Aristóteles (o que talvez se afigure uma injustiça). Mas este é um manual de lógica moderna, e não uma história da lógica. E a lógica moderna já nada tem a ver com Aristóteles.
Trata-se, em resumo, de um manual avançado, complexo, e exigente, com imenso material lógico para o leitor explorar detidamente, escrito por um matemático e destinado a iniciar na lógica moderna, sob a perspectiva algébrica, quem é estudante de matemática. Também pode ser recomendado, apesar da sua dificuldade, a quem não é de matemática (estudantes de filosofia, designadamente), desde que se possua já um conhecimento muito bom de lógica moderna, como será o caso de estudantes de lógica da pós-graduação, por exemplo. Não é de todo, porém, um manual para iniciar principiantes não matemáticos na lógica, dada a sua dificuldade e exigência conceptual. Também não é, seguramente, para professores de filosofia do secundário — e, contudo, que bom seria que aqueles que ensinam a tal “lógica aristotélica” aos seus alunos compreendessem que nada estão a ensinar-lhes do que é verdadeiramente a lógica, como este manual de Kaye amplamente demonstra.
Há um site na Internet para acompanhar este manual de Richard Kaye, segundo é indicado no livro, em que contém material adicional, exercícios e sugestões de resposta aos exercícios.
Evitei deliberadamente nesta recensão a simbologia matemática: é agora a altura de o leitor interessado em lógica moderna, e já com bastante experiência nela, começar a pagar a dívida contraída, por assim dizer, trabalhando o livro de Kaye, porque o que permitiu justamente a emergência da lógica moderna, com Frege, foi a sua matematização — não há lógica verdadeira sem matematização. Há mais de um século que sabemos isto. Como escreveu Quine, “a lógica é uma disciplina antiga, e desde 1879 é uma grande disciplina”.
Gabinete de Filosofia da Educação
Faculdade de Letras da Universidade do Porto

103) A importância dos livros introdutórios, por Desidério Murcho.

Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto

Como director primeiro da colecção Filosofia Aberta (na Gradiva) e agora da Filosoficamente (Bizâncio), além de colaborar com outros editores como as Quasi, Edições 70, Antígona, Didáctica Editora e Temas e Debates, tenho tido uma larga experiência na publicação de livros introdutórios de filosofia, ao longo dos últimos dez anos. Mas será realmente importante publicar tais livros? Esta é a pergunta a que procurarei dar resposta.
Quando se trata de escrever um livro ou de organizar uma antologia original, a primeira coisa a ter em mente é: para quem é este livro importante? O mesmo acontece quando se trata de escolher, de entre as centenas de livros publicados noutras línguas, o que vamos traduzir para publicar em português. Esta pergunta pode parecer estranha porque há uma tendência entre as pessoas que lidam com livros, sejam académicos ou romancistas, para nunca considerar tal coisa: tudo o que conta, ao que parece, é o próprio umbigo.
Quando comecei a dirigir a Filosofia Aberta, o editor da Gradiva, Guilherme Valente, disse-me que não há sucesso cultural sem sucesso comercial. Isto a princípio pareceu-me falso e revelador de uma mentalidade mercantilista, mas depois compreendi que era apenas a negação da atitude egocêntrica que domina a relação que muitas pessoas têm com a vida cultural. A minha primeira tarefa foi começar a visitar as livrarias portuguesas — que não visitava há anos, pois tudo o que lia vinha do estrangeiro (o que nessa altura não era tão fácil porque não havia ainda Internet). E comecei também a dar atenção às necessidades de professores, estudantes e público em geral, para poder publicar livros que fossem para eles significativos. Esta atitude é por vezes irritante, pois dava-me imensa vontade de publicar The Nature of Necessity, de Plantinga, por exemplo, mas sabia que este livro não seria significativo para a generalidade dos leitores.
Assim, a primeira tarefa ao pensar publicar um livro é pensar quão significativo ele pode ser para o público. Um livro demasiado sofisticado pode ser muitíssimo bom, mas se as pessoas não têm preparação para o compreender e poder dialogar com ele, o seu efeito cultural é nulo, apesar de poder dar prestígio a quem o publica. Contudo, quando se fala de sucesso comercial, em filosofia, temos de ter em mente que nesta área há ritmos diferentes. No caso da filosofia (como nas ciências, história e outras áreas académicas) estamos a trabalhar com livros cuja vida útil é muito superior, se o livro for realmente bom, à da maior parte dos livros. Assim, o sucesso comercial de um livro de filosofia nunca é como um best-seller, mas se o livro for de alta qualidade e adequado para o público, terá vendas constantes ao longo de muitos anos, ao passo que um best-seller tem uma vida útil curta — dois anos ou menos, por vezes. Quase todos os livros que publiquei há quase dez anos continuam a vender-se bem hoje em dia, porque continuam a ser importantes e significativos para novas gerações de leitores.
Quando comecei a contactar mais intimamente com a vitalidade editorial de outros países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, compreendi que, nestes países, publicar livros de filosofia não é uma tarefa comercialmente votada ao fracasso. Sendo verdade que nestes países se publica muitos livros de venda muito reduzida — monografias e estudos sofisticados — publica-se também imensos livros introdutórios, antologias e outros livros muitíssimo importantes para a qualidade do ensino. Basta acompanhar os catálogos de filosofia de editores como a OxfordCambridgeBlackwell e Routledge, para referir só algumas das mais importantes editoras na área, para perceber que estes livros são não apenas comercialmente viáveis como comercialmente apetecíveis.
Contudo, na minha mentalidade muito tola da altura, pensava que o comércio e a cultura são necessariamente antagónicos. Esta mentalidade resultava de pura ignorância e provincianismo. Há milhares de estudantes que estudam filosofia porque gostam, e gostam por isso de bons livros de filosofia e precisam deles; há muitas mais pessoas interessadas em filosofia, ainda que não a estudem na universidade. Por que razão não haveriam estas pessoas de comprar livros de filosofia significativos para elas? Claro, não poderão comprar livros muitíssimo sofisticados, como o mencionado de Plantinga, pois para poder compreender esses livros precisam primeiro de estudar os outros. E se só publicarmos livros desses, essas pessoas vão às livrarias, compram um desses livros, levam para casa e, depois de lutar debalde com os primeiros capítulos, abandonam a leitura porque não compreendem o que estão a ler. Vão de novo às livrarias e compram mais alguns livros de filosofia; mas se esta experiência frustrante se repetir, vão pensar que a filosofia é ininteligível e param de comprar. É por isso que tantos editores pensam que editar filosofia não é comercialmente viável: porque editam livros inadequados.
Repare-se que o problema não é realmente apenas comercial: é cultural. Se publicamos livros que as pessoas não compram, não estamos a ajudá-las a conhecer melhor a filosofia, que era o que elas queriam. Além disso, se não houver livros introdutórios de qualidade, não poderá haver ensino de qualidade da filosofia — e consequentemente não haverá investigação de qualidade em filosofia. Um professor excelente dá aulas excelentes a vinte estudantes num semestre, mas nesse mesmo semestre um livro excelente ajuda mil estudantes, ou muitos mais, a atingir a excelência. A importância dos livros para a qualidade do ensino e consequentemente da investigação não podia ser maior.
Outro aspecto algo absurdo da minha mentalidade que tive de corrigir foi o seguinte: à semelhança dos meus colegas e professores, inicialmente eu pensava apenas nas Grandes Obras — Obras Completas de Aristóteles, Obras Completas de Husserl, etc. A publicação destas obras, contudo, não é prioritária ou pelo menos não é tão importante quanto a publicação de obras introdutórias. A razão é muito simples: quem está já num nível de sofisticação suficiente para poder ler estas obras adequadamente, tem de dominar uma língua qualquer culta e pode então ler estas obras nessa língua. Mas o estudante que dá os primeiros passos, ou o grande público, tipicamente não está habituado a ler noutra língua e muitas vezes nem pode realmente fazer isso porque não domina outra língua. De modo que a publicação das Grandes Obras é chover no molhado. Isto não é dizer que não se deva estimular a tradução e publicação de obras mais sofisticadas; quer apenas dizer que se desprezarmos a publicação de obras que formam o público e os estudantes, nunca teremos realmente público para as outras — e depois, quando as publicamos, ficamos muito desconcertados porque se venderam muitíssimo mal.
Evidentemente, é muito fácil ter uma atitude algo sobranceira e declarar que os livros introdutórios não nos interessam. Mas isto tem de ser falso e a sua falsidade revela-se quando os professores começam a queixar-se da falta de qualidade dos alunos, ou quando os investigadores começam a queixar-se da falta de qualidade dos colegas. Nos dois casos, essa falta de qualidade é o resultado directo da ausência de bons livros introdutórios. Se os alunos e investigadores pudessem estudar esses livros, seriam melhores alunos e melhores investigadores. Por isso, quem se queixa de qualquer destas duas coisas e ao mesmo tempo despreza a bibliografia introdutória de filosofia está pura e simplesmente a contradizer-se — sem que disso se aperceba, evidentemente.
Estas são algumas das razões que me fazem pensar que os livros introdutórios são importantes. Resolvi escrever este artigo porque me parece que muitos professores e até estudantes não vêem as coisas desta maneira, e eu penso que estão errados pelas razões que procurei apresentar. Até que ponto a minha opinião é falsa e a tarefa de publicar livros introdutórios é pura perda de tempo? A esta pergunta só o leitor pode responder.

102) Bons Manuais de Filosofia.


Os bons manuais de filosofia são importantes, pois sem eles não há ensino de qualidade de filosofia e, em consequência, não haverá investigação de qualidade em filosofia. Além disso, os manuais aproximam o público leigo da filosofia e contribuem para uma maior compreensão que este possui da importância da filosofia. Segue abaixo uma lista com alguns bons manuais. Os livros que já foram divulgados no blog ou na revista do Critica não estão na lista:

De Como Fazer Filosofia sem ser Grego, Estar Morto ou Ser Gênio, de Gonçalo Armijos Palácios

101 Problemas De Filosofia, de Martin Cohen

Fique por Dentro da Filosofia, de Neil Turnbull

Filosofia para Principiantes, de Richard Osborne

O Porco Filosófico - 100 experiências de pensamento para a vida cotidiana, de Julian Baggini

Para que serve tudo isso? A filosofia e o sentido da vida, de Platão a Monty Python, de Julian Baggini

Uma introdução aos vinte melhores livros de filosofia, de James Garvey

Filosofia, de Jeremy Stangroom

Os Grandes Filósofos, de Bryan Magee

Os Arquivos Filosóficos, de Stephen Law

Filosofia - Um Convite, de Martin Hollis

101) Eugenio Gudin - um economista desenvolvimentista.

Não no sentido comummente atribuído ao conceito de desenvolvimentista, obviamente, mas no sentido lato da palavra, pois ele pretendia o desenvolvimento do Brasil, dentro da racionalidade econômica, como demonstra o economista Ricardo Bergamini nesta homenagem prestada ao grande economista falecido há mais de duas décadas.
Paulo Roberto de Almeida

[Nota: endereço de origem aqui ou no título desta postagem.] 

Gudin, o profeta do desenvolvimento econômico
Ricardo Bergamini
Carta do IBRE – Revista Conjuntura Econômica – Edição de Março de 2006

Em um país onde o populismo tantas vezes sufocou a voz da razão e dominou a agenda de política pública, defender a racionalidade econômica pode ser ainda hoje, em alguns casos, uma tarefa penosa e ingrata, apesar dos grandes avanços neste campo desde a década de 90. Se isto é verdade nos nossos dias, imaginemos como seria no Brasil de mais de 50 anos atrás, em um contexto muito mais atrasado, e bem menos familiarizado com o rigor do pensamento lógico no trato das questões econômicas.

Foi neste ambiente histórico, em meio a forças culturais hegemônicas pouco preparadas para absorver suas idéias, que surgiu na história brasileira a figura de Eugênio Gudin. Não fora certo espírito provocativo, onde se misturavam paciência e uma ironia benigna ante a incompreensão e por vezes a injúria — e que viríamos a encontrar em outros expoentes do nosso liberalismo, como Roberto Campos —, e talvez Gudin não tivesse amealhado as energias para plantar em solo brasileiro, como de fato o fez, algumas das primeiras sementes da racionalidade econômica.

Com gosto pela polêmica séria, fundamentada em argumentos sólidos, ele não se intimidava em atuar na ponta contrária a de grandes personalidades, como o industrial Roberto Simonsen e o economista Celso Furtado. Nadar contra a corrente, para Gudin, era um exercício estimulante e fortalecedor.

Passados 20 anos do seu falecimento, em 1986, após um século de vida, é impressionante verificar a atualidade do seu pensamento. Ainda na década de 50, ele fez o diagnóstico básico dos problemas estruturais que impedem ou dificultam, até hoje, o crescimento brasileiro, e que podem ser resumidos em três grandes grupos: (i) necessidade de concentrar esforços em setores nos quais temos vantagens comparativas; (ii) diminuir o atraso educacional; (iii) reduzir o déficit em infra-estrutura.

Um dos desdobramentos recentes da economia brasileira que mais confirma as teses de Gudin foi a explosão do agronegócio. Ele está ligado ao item (i) da agenda básica, e tem a ver com a exploração das vantagens absolutas, como a abundância de terra, água e luz, que vocacionaram o Brasil à agricultura. Sobre este tema, é preciso deixar claro que, ao contrário do que afirmaram algumas vezes os seus adversários, Gudin nunca foi contra a indústria. Por exemplo, depois de discorrer em alguns parágrafos sobre os malefícios da proteção excessiva às indústrias nascentes, ele mesmo faz a ressalva: “Isto não quer dizer que eu seja contrário à industrialização e favorável a um Brasil essencialmente agrícola”.

Gudin, porém, foi um crítico acerbo da industrialização a qualquer custo, e do modelo de substituição generalizada de importações, fomentados por proteção e subsídios que resultavam em uma produção nacional ineficiente e incapaz de conquistar os mercados internacionais: “(…) o critério dominante entre nós tem sido o de levar a proteção até o nível necessário para amparar o produtor marginal, destruindo assim todo o incentivo à melhoria da produtividade na indústria”.

A importância do agronegócio — É nesta ótica, de quem não era inimigo da industrialização, mas apenas combatia a forma equivocada pela qual ela estava sendo estimulada, que Gudin chamou a atenção, de forma pioneira, para a importância do agronegócio no futuro do Brasil. Ele criticou o mito tão recorrente no pensamento nacional de que industrialização seria um sinônimo de desenvolvimento: “A Nova Zelândia, a Austrália, a Dinamarca, a Argentina, o Estado de Iowa se inscreveram entre os mais ricos do mundo (produto nacional per capita) na base de produção puramente agrícola. Pobreza é sinônimo de baixa produtividade, seja ela agrícola ou industrial”.

Gudin percebia que o potencial agropecuário do Brasil (e do setor primário em geral) não era apenas o de exportar commodities, mas também o de diversificar a pauta e agregar inteligência às suas atividades: “Se, de fato, estamos resolvidos a dar a ‘arrancada’ para o desenvolvimento econômico, precisamos compreender que não é mais possível limitar as nossas exportações, como até agora temos feito com o açúcar, com a borracha e com o café, àquilo que a natureza produz quase sozinha, independentemente de know-how. Temos enormes possibilidades de exportação de minérios, de carnes, de frutas, de ovos, etc., desde que nos habilitemos a aprender e a utilizar as técnicas modernas de produção”.

De forma ainda mais presciente, Gudin antecipou a necessidade de o Brasil desenvolver por conta própria uma tecnologia agropecuária adaptada aos trópicos, o que só viria a tornar-se realidade a partir da criação da Embrapa, nos anos 70: “No setor industrial a técnica de fabricar panelas, calçado, ou garrafas adotada nos Estados Unidos ou na Europa é integralmente transportável para aqui. No caso da agricultura é diferente o clima; são diferentes os produtos; são diferentes os solos. A pesquisa científica e técnica têm que ser realizada aqui. E é nisso que nós temos falhado lamentavelmente, por falta de técnicos em qualidade e número suficientes para a pesquisa da produtividade dos vários produtos nas múltiplas variedades de solos”.

Foi preciso quase meio século para que a economia brasileira provasse que Gudin estava certo, com o espetacular salto em competitividade e volume do agronegócio nacional nas últimas décadas. Este desempenho veio na esteira das reformas que, mesmo de forma claudicante e penosa, aboliram o modelo de substituição de importações que enviesava o investimento brasileiro na direção da indústria até a década de 70. O boom do agribusiness é tributário também dos admiráveis avanços tecnológicos na agropecuária, como a soja do cerrado, o melhoramento genético do gado nelore e a cana superprodutiva do Sudeste — tornando realidade as recomendações de Gudin sobre a pesquisa neste setor.

Hoje, o Brasil é o maior produtor e exportador do mundo em álcool, açúcar, café e suco de laranja, e o maior exportador global do complexo soja, de carne bovina, de fumo, e de carne de frango. Foi o agronegócio, naturalmente, com saldos comerciais da ordem de US$ 30 bilhões, ou mais, nos últimos anos, que criou as condições para que o Brasil realizasse uma sensacional virada nas suas contas externas, praticamente eliminando a vulnerabilidade que marcou grande parte da sua história.

A lacuna da educação — Se na agropecuária o país recuperou o tempo perdido e hoje corresponde ao que Gudin preconizava, o mesmo não se pode dizer da educação, onde nos mantemos em forte desvantagem na comparação com nossos competidores mais bem-sucedidos, apesar da quase universalização do ensino fundamental nos anos 90 (com mais de um século de atraso em relação ao mundo desenvolvido). A novidade do período recente é que, com décadas e décadas de atraso em relação à pregação de Gudin, as elites intelectuais e dirigentes do Brasil parecem ter acordado para o fato de que a formação do capital humano por meio da educação é fundamental para o desenvolvimento econômico — algo que parece ter escapado ao pensamento cepalino representado por Celso Furtado. Gudin, por sua vez, já era taxativo sobre este tema em 1956: “Sustento portanto a preliminar de que o mais danoso de todos os nossos ‘pontos de estrangulamento’ é o da educação, que deveria figurar, com alta prioridade, no programa de Desenvolvimento Econômico”.

Mais de quatro décadas tiveram que passar até que uma nova geração de economistas, munida de ferramentas quantitativas inexploradas na era em que Gudin viveu seu apogeu intelectual, viesse a demonstrar o acerto das recomendações do mestre. O trabalho de Ricardo Paes e Barros e Rosane Mendonça apontam para um aumento na taxa de crescimento da renda per capita em 0,35 ponto percentual para cada ano adicional de escolaridade média brasileira. E, segundo estudo de Samuel Pessôa, estimativas conservadoras indicam que 35% da diferença entre a renda per capita brasileira e a norte-americana pode ser explicada pela diferença de educação entre os dois países.

Na infra-estrutura, finalmente, com o qual Gudin envolveu-se pessoalmente, como executivo da Light e da Great Western of Brazil Railway Co., ele chamou a atenção para o fato de que este era um setor intensivo em capital, fator escasso no Brasil. E que, portanto, fazia sentido que empresas internacionais explorassem os serviços de infra-estrutura no país. Em artigo no jornal O Globo, em dezembro de 1960, Gudin discorreu sobre obstáculos criados pelos governantes do país ao desenvolvimento econômico: “Por exemplo, (…) afastando o capital alienígena e até o nacional dos investimentos em serviços de utilidade pública que exigem grandes massas de capital e se contentam com uma remuneração modesta, desde que estável”.

Na verdade, se as suas orientações quanto à melhor política para o setor de infra-estrutura tivessem sido observadas ao longo das muitas décadas da sua longa vida, o alívio da necessidade de aportes do setor público aos serviços básicos permitiria, por exemplo, que maiores investimentos tivessem sido canalizados para educação. A mentalidade dominante na época, porém, via as empresas estrangeiras de infra-estrutura como entidades que “exploravam” o Brasil, extraindo lucros exorbitantes das suas atividades. O símbolo maior desta visão era a Light, o “polvo canadense”. Sob a influência desta concepção, e das suas necessidades políticas de curto prazo, sucessivos governos penalizaram a atuação das empresas internacionais de infra-estrutura com decisões casuísticas e medidas populistas, que progressivamente inviabilizariam a sua atuação no Brasil. Isto levou a um processo, iniciado na década de 30, de encampação pelo setor público daquelas atividades.

Gudin combateu incansavelmente, ao longo da sua vida, este pensamento paroquial que demonizava o capital estrangeiro, e as arbitrariedades do governo que o afugentaram. Isto fica claro no trecho em que se refere “à lamentável incapacidade dos governos, entregando as empresas à sanha da politicagem e das demagogias locais, negando-lhes tarifas que lhes permitissem viver, revogando unilateralmente cláusulas contratuais e até, como no caso do Código de Águas de 1934, ameaçando-os de confisco integral se as máquinas não funcionassem por 72 horas”.

Como nos outros temas expostos nesta Carta, a história viria a dar razão a Gudin, o que fica demonstrado por alguns trabalhos recentes. O estudo de William Summerhill indica que a remuneração do capital investido nas ferrovias brasileiras está longe de ter sido excessiva, tendo ficado em torno de 8% ao ano. E na dissertação de mestrado, defendida em 2006 na EPGE/FGV, Marcelo Jourdan calcula que a remuneração do capital investido na Light (média para o período 1900-1978) foi de apenas 3,6% quando medida em dólares constantes. Estes trabalhos revelam que toda a idéia de que os capitalistas dos setores de infra-estrutura exploraram os consumidores, tão combatida por Gudin, não encontra suporte nos dados.

O resultado da prevalência de uma visão oposta à de Gudin por tantas décadas fica claro em estudos que apontam um déficit de infra-estrutura do Brasil — relativamente aos seus pares e considerando as características físicas e humanas do país — de pelo menos 40%, em média, tomando-se setores como energia elétrica, rodovias, ferrovias, água potável, esgotamento sanitário e telefones fixos e celulares. Na verdade, a telefonia é uma exceção, na qual o Brasil tem um superávit em relação aos seus pares — não por acaso, o setor em que a privatização teve maior sucesso e no qual mais contribuiu o capital estrangeiro no período recente. Retirando-se este segmento, o déficit em infra-estrutura torna-se ainda maior.

Maiores riscos ao crescimento — Nem é preciso dizer que as deficiências em infra-estrutura são consideradas hoje um dos maiores riscos ao crescimento sustentável de longo prazo do Brasil. Até os nossos dias, permanece a falta de clareza nesta área. Verifica-se em segmentos tão distintos quanto eletricidade e saneamento a situação na qual o setor público não tem recursos para dar conta dos investimentos necessários, tampouco constrói de forma adequada o marco regulatório e institucional que estimule o investimento privado.

Na literatura econômica, por outro lado, são fartas as evidências do impacto positivo do estoque de infra-estrutura no desenvolvimento dos países. Segundo trabalhos de Canning e de Calderón e Servén6, o déficit neste setor explica cerca de 35% da diferença entre a taxa de crescimento do Brasil e a da Coréia do Sul. Há também indícios de que o aumento do acesso à infra-estrutura reduz a desigualdade de renda. De acordo, ainda, com o trabalho de Calderón e Servén, se o Brasil tivesse o estoque de infra-estrutura per capita da Coréia do Sul, haveria uma redução de 15% na desigualdade de renda brasileira, equivalente a uma queda de 0,09 no índice de Gini.

Quando se toma em conjunto a visão econômica de Gudin, que já se manifestava no período anterior à Segunda Guerra Mundial, verifica-se como o Brasil perde tempo e marca passo ao não dar ouvidos aos seus melhores quadros. O economista, com formação inicial de engenheiro, foi delegado na Conferência de Bretton Woods, ocupou diretorias do FMI e do Bird, e teve uma rápida passagem pelo Ministério da Fazenda no governo de Café Filho. As elites dirigentes do país, porém, ainda que muito respeitosas em relação à figura pública e à inegável sabedoria econômica de Gudin, conduziram o Brasil por caminhos diversos daqueles que ele preconizava, ao longo de quase toda a sua vida.

Praticamente até o fim, manteve o hábito de escrever artigos regulares na imprensa, nos quais defendia com brio o seu ideário liberal, em meio aos desvios populistas que se sucediam. Nesta Carta, focada em suas idéias sobre o agronegócio, a educação e a infra-estrutura, nem chegamos a tocar na sua postura de permanente defesa da responsabilidade fiscal e monetária, valores que só viriam a ser entronizados na política e na opinião pública na década de 90. A vida de Gudin, que conjuga coerência, acerto e energia para defender idéias em ambiente hostil, ilumina não só os caminhos econômicos que o país deveria seguir, mas representa também uma história pessoal de ética, inteligência e determinação que é um exemplo para todos os brasileiros.

Ricardo Bergamini