Investigações Lógicas, de Gottlob Frege
Organização, tradução e notas de Paulo Alcoforado
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, 112 pp.
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Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, 112 pp.
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Gottlob Frege (1848-1925), um dos fundadores da filosofia analítica, revolucionou a lógica. Em meio da sua tentativa de derivar a aritmética a partir da lógica, em 1879 ele publicou a sua Begriffsschrift (Ideografia), o primeiro ensaio a conter o cálculo dos predicados e que deu origem à lógica clássica que utilizamos hoje. Sua Ideografia consistiria, grosso modo, numa linguagem simbólica capaz de substituir e suplementar a linguagem natural face à imprecisão e insuficiência desta para usos científicos. A difícil tarefa de fundamentar as noções básicas da aritmética exigiria uma linguagem rigorosa, um instrumento seguro para garantir a exatidão na dedução, com axiomas e regras de inferência elucidadas a cada passo. Essa linguagem também não recorreria à intuição, que ao longo da história da matemática mostrou ser um guia pouco confiável nas demonstrações.
A lógica fundada por Frege representa um enorme avanço em relação às lógicas anteriores e não é apenas um tipo de lógica diferente, uma "alternativa" à lógica aristotélica. Mais especificamente, a lógica clássica não só contém a lógica aristotélica como também permite explicar sintaticamente alguns aspectos da lógica aristotélica que a sua linguagem silogística não consegue explicar. Na verdade a lógica aristotélica só pode ser aplicada a classes não vazias, ao passo que a lógica de predicados de Frege ultrapassa essa limitação. Sua lógica também representa um avanço em relação a outros de seus precursores. George Boole (1815-1864), por exemplo, procurou elementos e fórmulas da aritmética para construir sua lógica. Frege, ao contrário, procurou separar cuidadosamente os símbolos lógicos dos aritméticos, justamente porque pretendia utilizar a lógica para fundamentar a aritmética. A lógica de Boole se parece mais com um calculus ratiocinator que é incapaz de exprimir todas as expressões e formas de inferência, que Frege visava com sua Ideografia.
O programa logicista de derivar a aritmética a partir da lógica se encontra hoje em descrédito, mas a pretensão de Frege em encontrar uma linguagem adequada para realizar tal tarefa culminou na sua imensa contribuição à lógica. Além disso, Frege desenvolveu uma série de conceitos e questões em filosofia que interessam ainda hoje, como a sua crítica ao psicologismo e a célebre distinção entre sentido e referência, só para mencionar algumas de suas contribuições filosóficas. Neste livro encontramos quatro trabalhos que se convencionou reunir em uma única obra sob o título de Investigações Lógicas: "O Pensamento", "A Negação", "Pensamentos Compostos" e "A Generalidade Lógica". A tradução de Paulo Alcoforado, um dos maiores conhecedores de Frege no Brasil, é competente. O livro também vem acompanhado de um interessante Corpus Fregeanum, que além de listar todas as obras de Frege apresenta obras contemporâneas que contêm seus escritos.
Um dos exemplos da originalidade filosófica de Frege é sua explicação do pensamento, apresentada no primeiro artigo. Quando duas pessoas entendem o sentido da sentença "O chocolate é doce", elas partilham do mesmo pensamento. É claro que quando alguém pensa "O chocolate é doce" diversos eventos psicológicos podem acontecer, como memórias do sabor do chocolate, sensações e imagens mentais — é o que Frege denomina de idéias. Mas ao contrário das idéias, eventos que pertencem ao mundo psicológico do sujeito, os pensamentos são completamente partilháveis e objetivos nos diferentes indivíduos que podem reconhecê-los e associá-los com palavras. Negar isso seria o mesmo que negar a possibilidade de comunicação.
Frege também entende os pensamentos como objetivos noutro sentido. Poderíamos afirmar que os pensamentos são partilháveis e ao mesmo tempo sustentar que sua existência e propriedades são dependentes da atividade humana. Mas não é essa a perspectiva de Frege. Para ele os pensamentos também são objetivos no sentido em que existem independentemente da atividade humana. Os pensamentos não são criados e nem surgem do processo de pensar; existem mesmo que não os tenhamos reconhecido, ou mesmo que nunca fossemos capaz de reconhecê-los. Assim como os planetas não passam a existir apenas quando são descobertos, também os pensamentos "já estão lá", em um outro mundo metafísico e de alguma maneira à espera de nossa compreensão. Além disso, os dois tipos de objetividade (capacidade de serem partilháveis e independência) também são aplicáveis à verdade dos pensamentos.
Neste ponto, surge um problema para a explicação de Frege, pois a imutabilidade da verdade dos pensamentos não parece condizer com a mutabilidade de inúmeras verdades além de conduzir a um tipo de fatalismo. Poderíamos perguntar: a que verdades imutáveis corresponderiam os pensamentos "Eu não vou sair amanhã" ou mesmo "Tirei notas baixas em inglês"? No primeiro caso, se admitirmos que a verdade do pensamento já "estava lá", somos obrigados a admitir uma forma de fatalismo, em que temos um destino determinado. No segundo caso, não sabemos explicar a relação desse mundo metafísico e imutável com o nosso mundo, pois as minhas notas ruins representam uma verdade contingente e mutável, embora tenha uma contraparte metafísica necessária e imutável. Frege responde à segunda objeção fazendo distinções metafísicas entre as partes mais essenciais e menos essenciais do pensamento; as partes menos essenciais captariam a mudança das coisas. Trata-se, contudo, de uma solução artificiosa.
É surpreendente que tivemos que esperar até 2002 por uma tradução dessas obras. E mais surpreendente ainda é que a tradução dessas obras não se dê por meio de uma grande editora, mas em uma pequena coleção de livros de filosofia de menor expressão. Ao procurar por outras obras de Frege traduzidas para o português só encontrei dois livros: uma coletânea de artigos intitulada Lógica e Filosofia da Linguagem (Editora Cultrix) e excertos de duas obras: Sobre a Justificação Científica de uma Conceitografia e Os Fundamentos da Aritmética (Nova Cultural). A primeira é uma excelente coletânea de alguns dos principais artigos de Frege, também traduzida e organizada por Paulo Alcoforado, mas que infelizmente está esgotada há muito tempo, sua última edição foi em 1978. A segunda resulta de excertos selecionados e traduzidos por Luís Henrique dos Santos, na já conhecida coleção Os Pensadores.
Alguém poderia objetar que ignoro a política das grandes editoras, segundo a qual o que importa é a quantidade de livros a serem vendidos e não a qualidade desses livros. O problema dessa linha de raciocínio é que mesmo nesse sentido as obras de Frege constituem um sucesso editorial garantido. Sabemos que as traduções dos clássicos são sempre promissoras para as editoras: para citar dois exemplos no Brasil basta lembrar de clássicos como O Tratado da Natureza Humana, de David Hume (UNESP), que já se encontra esgotada e todos os livros da já mencionada coleção Os Pensadores (Nova Cultural), que continua a ser reeditada ao longo dos anos e é presença constante entre os alunos de filosofia. Essas razões, por si mesmas, deveriam ser suficientes para demonstrar que a tradução de clássicos é vantajosa não só para as editoras, mas para todos.
Este livrinho tem vários méritos, sendo um deles a forma de escrita. Frege, ao contrário dos pensadores obscuros, tem uma prosa clara e de modo cortês convida o leitor a avaliar a força de suas idéias diretamente, sem peias, a cada página. Trata-se de uma oportunidade intelectual ímpar, típica dos clássicos. Uma leitura obrigatória para quem aprecia o que há de melhor na filosofia.
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