sexta-feira, 12 de março de 2010

45) A sociedade é que não me deixa.


Novamente, Desidério Murcho com a palavra. A despeito de qualquer determinismo sociológico, o que está em questão é que certas ideias, como esta abaixo, não têm fundamento racional.

Vinícius Portella

Porto Alegre,
12 1331 mar 2010.

15 de Dezembro de 2009


A sociedade é que não me deixa

A Cultura, os Livros, a Ciência, as Artes, a Espiritualidade — tudo isto é Maravilhoso, mas a sociedade, superficial, não se interessa por essas coisas. A sociedade é materialista e hedonista e etc. Ah, se não o fosse...
É comum ouvir-se ou ler-se este lugar-comum. E eu penso que é uma mentira que esconde algo. Nomeadamente, o desinteresse que tem quem lhe dá voz pelas coisas que diz preferir. Depois, é mais fácil deitar as culpas para cima dos outros, e assim manter a auto-imagem de que nós somos realmente Superiores, Cultos, Artísticos, etc.

Mas tudo isto é mentira. Quem tem este tipo de discurso não são as pessoas das classes tão desfavorecidas que não podem escolher dedicar-se à ciência, às artes ou à cultura; pelo contrário, são pessoas da classe média, com casa própria, às vezes mais de uma, automóvel, televisão de plasma, telemóveis dos caros e férias pagas. São pessoas que se quiserem têm o tempo e os recursos para ler, estudar, visitar museus ou exposições de arte. Apenas não o fazem porque na verdade preferem frivolidades a tudo isso — mas não o querem admitir. 

A vida de praticamente todos os artistas, cientistas ou filósofos é um teste contínuo à força de vontade, uma luta constante contra todos os obstáculos das frivolidades do dia-a-dia, que nos roubam tempo e tornam mais fácil não fazer o que mais valorizamos. E é curioso que é tanto mais alta a probabilidade de não se dar voz às ideias feitas que estou a denunciar quanto mais a pessoa realmente se dedica às artes, ciências ou cultura.

É argumentável que as ideias feitas que estou a denunciar têm origem numa consciência vaga de que se estivéssemos rodeados de pessoas dedicadas às artes, ciências e cultura também nós teríamos a força de vontade necessária para nos dedicarmos a essas coisas, em vez de ficarmos a criar barriga vendo futebol e novelas, arrotando e bebendo cerveja. Mas isto é na verdade uma ilusão. Quem escolhe uma vida frívola sente-se muito aborrecido se tiver de passar um fim-de-semana sozinho a ler um livro ou se tiver de escrever um artigo ou de pintar um quadro ou de aturar uma conversa de duas horas que não seja frívola e não inclua dez pessoas aos berros. E é por isso mesmo que escolheu a vida frívola. 

Em suma, a ideia feita consiste em culpar a sociedade por não nos deixar ser o que na realidade não temos interesse em ser — pois se o tivéssemos sê-lo-íamos — mas queremos fingir que temos interesse em ser por pensar vagamente que isso dá estatuto.

3 comentários:

  1. Alô Vinícius!

    Acho isto tudo aí encima bem bonito, mas, francamente, é muito vago. Do que o Desidério tá falando? Falta ao menos um exemplo claro e específico, bem caracterizado, o que nos deixa nas vizinhanças da falácia do espantalho.

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  2. César,

    Sou levado a concordar contigo. O texto fica tão vago que acaba tendo de contar com o leitor identificar-se com o escrito, de relacioná-lo a algum evento ou aspecto de sua vida, de preencher suas lacunas para fazer mais sentido. Naquele estilo "conheço uma pessoa que é assim" ou "também tenho de lutar constantemente contra as frivolidades". Até porque o Desidério pouco especifica de que pessoas em que situações ele está falando.
    Concordo que ele se aproxime demasiado das vizinhanças da falácia do espantalho. No entanto, creio que poderíamos conceder-lhe o ponto de que ninguém se deve perder em autocomiserações, em desculpas, por não fazer certas coisas, quando teria todas as condições de fazê-lo.
    O que achas a respeito?

    Um grande abraço,

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  3. Ei Vinícius,

    ok, como conselho pra vida, tá certo que no geral devemos evitar a autocomiseração em excesso, assim como devemos evitar qualquer sentimento em excesso qualitivativo ou quantitativo. Viva o justo meio! :)

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