terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

1) Para começo de conversa...


Eu tinha em mente, neste primeiro post, fazer uma apresentação dos motivos que me levaram a me dedicar a este blog e da sua proposta de maneira mais detalhada. No entanto, não o faço agora. Seguem-se dois textos retirados da "Crítica: revista de filosofia" (http://criticanarede.com/), cujo diretor Desidério Murcho já, há certo tempo, angaria minhas simpatia e admiração.

Do primeiro texto foram retirados os exemplos dados por seu autor quanto a como a lógica pode ser de serventia valiosa na discussão valiosa, visto que minha pretensão é tratar de maneira análoga ao artigo o problema do ensino da sociologia no ensino médio, pois acredito que alguns dos argumentos levantados por Aires Almeida também se apliquem a esta outra disciplina. Aconselho, no entanto, sua leitura integral no seguinte endereço: http://criticanarede.com/html/logicaefilosofia.html.

O segundo texto (http://criticanarede.com/html/soberba.html) aqui publico por ser uma opinião a qual me inclino a endossar integralmente; restando, entretanto, um outro pormenor para maior exame meu e em que seja possível uma pequena discordância. Deixo qualquer consideração minha a posteriori.


Vinícius P. Portella
(09 fev 2010)

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23 de Dezembro de 2009 · Ensino da filosofia

A lógica e o lugar crítico da razão

Aires Almeida

Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, Portimão
Será o estudo da lógica necessário ao ensino da filosofia no secundário? E será o ensino da filosofia no secundário necessário para formar bons cidadãos? Acredito que a resposta é, em ambos os casos, negativa.
O que se segue daí? Segue-se que nem a filosofia nem a lógica devem ser ensinadas nas nossas escolas secundárias? De forma alguma. Defendo, pelo contrário, que uma concepção correcta do que deve ser o ensino da filosofia e do carácter instrumental da lógica para a filosofia aponta até para que o estudo de ambas seja reforçado. Tal concepção — que adiante esclarecerei — acerca das finalidades da disciplina da Filosofia e do papel da lógica na discussão filosófica exige, contudo, que se reveja substancialmente o modo como a filosofia e a lógica são actualmente encaradas em muitas escolas e manuais escolares, mas também no programa da disciplina.
Mas vale a pena dizer brevemente por que razão a resposta às duas perguntas iniciais é negativa, começando pela segunda, por ter um carácter mais elementar.
Se o estudo da filosofia no secundário fosse condição necessária para formar bons cidadãos, não haveria bons cidadãos nos países em que não se ensina filosofia no secundário, o que não é manifestamente o caso. Ainda assim, há quem argumente que, apesar de aprender filosofia na escola não ser condição necessária para a boa cidadania, o bom cidadão é, acima de tudo, o cidadão crítico. Ora, desenvolver a capacidade crítica dos jovens é , segundo se diz, a tarefa fundamental da disciplina de Filosofia.
Mas é ilusório pensar que, se não aprendermos filosofia, a nossa capacidade crítica fica, de algum modo, amputada. O uso crítico da razão não é um exclusivo da filosofia, sendo fundamental também nas ciências e até nas artes. O lugar crítico da razão não é, pois, propriedade privada da filosofia.
Isto não mostra que o ensino da filosofia no secundário seja menos importante do que o ensino de disciplinas como a Física, o Inglês ou a História, pois acredito que a função da escola não é primariamente formar bons cidadãos, mas antes garantir um direito fundamental de qualquer cidadão e que é o acesso a algo que tem valor intrínseco: o conhecimento1. Uma vez que a filosofia é, incontestavelmente, uma área central do conhecimento, o seu ensino está, por isso mesmo, mais do que justificado.
Quanto à resposta dada à primeira pergunta, é fácil compreender que o estudo da lógica não é necessário para o ensino da filosofia se pensarmos na apreciável quantidade de bons livros introdutórios de filosofia em que não se ensina noções básicas de lógica nem se exige qualquer formação prévia nesse domínio. E, todavia, consegue-se aprender filosofia com eles.
Pode-se aprender filosofia sem estudar lógica tal como se pode aprender a falar razoavelmente português sem estudar a gramática da língua portuguesa. É, de resto, o que acontece com as crianças portuguesas e com muitos imigrantes que vivem e trabalham entre nós. Não é que a gramática esteja ausente quando as crianças ou os imigrantes se exprimem em português, tal como a lógica não está ausente quando se discute filosofia, pois não existe algo como uma língua portuguesa sem gramática, nem discussão filosófica sem lógica. Expulsar a lógica da discussão filosófica só faria sentido caso se adoptasse uma concepção não crítica e não argumentativa da filosofia, em contraste com os cerca de vinte e cinco séculos de tradição filosófica.
Assim, a questão que vale a pena colocar sobre o papel da lógica no ensino da filosofia não é tanto saber se é possível aprender a discutir filosofia sem aprender lógica; é antes saber se a lógica pode fazer algo pelo ensino da filosofia e o quê.
Estas são questões que, na actual situação do ensino da filosofia em Portugal, acabam por ser mais importantes do que possa parecer. Digo isto porque julgo haver dois grandes riscos que ameaçam o ensino da filosofia no nosso país e que precisamos de começar a enfrentar quanto antes, sob pena de esta disciplina curricular começar a ser vista pela sociedade em geral — isto é, por aqueles perante quem a escola deve prestar contas — como algo dispensável. Esses riscos são:
  1. A tendência para a irrelevância cognitiva; e
  2. A tendência para o acriticismo opinativo.
O primeiro diz respeito aos conteúdos leccionados — frequentemente vagos e filosoficamente irrelevantes — e o segundo às competências exigidas — frequentemente apoiadas na mera recolha de informação avulsa, na repetição acrítica de ideias soltas, na ultra-simplificação e na opinião injustificada. Estes dois riscos andam a par e convergem para expurgar, a partir de dentro, a filosofia da disciplina de Filosofia. O resultado pode ser, como se adivinha, uma espécie de educação para a cidadania, onde cabe tudo e nada.
Ao contrário do que frequentemente se pensa, não há apenas uma maneira de extinguir a filosofia do ensino secundário. Excluir por decreto a disciplina de Filosofia do plano curricular do secundário talvez até nem seja a forma mais pacífica de o fazer. Há outra maneira mais silenciosa — e, por isso mesmo, mais eficaz — de acabar com a filosofia, que é transformá-la gradualmente noutra coisa qualquer: educação para a cidadania, história das ideias ou área de integração. Se nos deixarmos chegar aí um dia, deixará também de fazer sentido defender a manutenção do ensino da filosofia no secundário, pois não faz sentido defender a manutenção do que já não existe.
***
Um dos sinais mais claros de que algo corre mal no modo como a sociedade vê a importância de uma dada área disciplinar é a necessidade incontrolável de autojustificação por parte dos que a ela se dedicam. A necessidade de autojustificação é frequentemente uma prova de insegurança e o reconhecimento implícito de que aquilo que se faz está sob suspeita. Tal necessidade não se verifica entre os professores de Matemática, Física ou Inglês, para dar só alguns exemplos. Estas são disciplinas cujo estatuto e relevância social parecem indiscutíveis. Mas o mesmo não se pode dizer da Filosofia, a avaliar pelo discurso e, sobretudo, pela prática lectiva de muitos professores desta disciplina. Basta, aliás, consultar o próprio Programa de Filosofia do ensino secundário e grande parte dos manuais escolares, onde o discurso autojustificador impera.
Uma das secções iniciais do Programa de Filosofia intitula-se “Da Filosofia no Ensino Secundário”2. Com o objectivo de justificar a importância do seu ensino perante os próprios professores da disciplina, recorre-se ao argumento de autoridade, de acordo com o qual o conhecido Relatório Delors atribui ao ensino da Filosofia a tarefa de cumprir “um novo imperativo educativo”. Imperativo esse que consiste em “aprender a viver juntos”3. Dado que se trata, como aí se diz, de um imperativo novo, fica por explicar como foi possível justificar o ensino da Filosofia no passado, precisamente quando a sua importância e centralidade pareciam não estar tão em causa como agora.
Por sua vez, uma breve consulta dos manuais de Filosofia do 10.º ano mostra-nos muitos deles a abrir com longas prédicas sobre a importância de aprender filosofia, apoiadas na autoridade de não poucos textos e citações de filósofos ilustres, completamente desconhecidos dos alunos. Apesar de a relevância formativa da Filosofia ser dada como algo consensual entre os que a ensinam, ela acaba por ser um dos temas mais longamente desenvolvidos, merecendo por vezes mais espaço do que o problema do livre-arbítrio, que se lhe segue.
Sendo assim, deixa de ser surpreendente verificar como, em tantas turmas do 10.º ano, se consome quase todo o primeiro período do ano escolar a discorrer sobre a natureza e importância da filosofia, para alunos recém-chegados à Filosofia repetirem acriticamente em sucessivos testes de avaliação. O acesso ao lugar crítico da razão fica, deste modo, adiado e os alunos ficam com um bom exemplo da contradição pragmática que consiste em fazer a apologia acrítica da disciplina que visa promover neles a atitude crítica.
Se o retrato que acabo de fazer não estiver errado, o ensino da filosofia acaba por se deixar aprisionar numa espécie de círculo vicioso: a necessidade de defender a sua importância formativa leva ao adiamento da discussão filosófica propriamente dita; que por sua vez leva ao esvaziamento de conteúdos e à suspensão do exercício crítico da razão; que por sua vez tornam a disciplina socialmente suspeita de não ter qualquer papel relevante a desempenhar; que por sua vez leva à necessidade de defender a sua importância formativa.
Este círculo vicioso produz resultados desastrosos para o ensino da filosofia, perdendo-se de vista os seus conteúdos próprios, que são os problemas, as teorias e os argumentos da filosofia. Insiste-se, então, no valor instrumental desta disciplina: ela tanto pode estar ao serviço do fomento de uma cidadania activa e responsável como do “reconhecimento da democracia como o referente último da vida comunitária”4. Por um lado, isto acaba na prática por se traduzir na leccionação de temas filosoficamente improváveis como “os direitos das mulheres como direitos humanos”, “o voluntariado e as novas dinâmicas sociais” ou “o impacto da sociedade da informação na sociedade contemporânea”5. Por outro lado, abraçam-se temas filosoficamente comprometidos como “A plurivocidade da verdade” ou “A necessidade de uma racionalidade prática pluridisciplinar”6. Há ainda a promoção do “exercício crítico da razão”, supostamente reforçada pela opção entre o estudo da lógica aristotélica e o da lógica proposicional. Mas sobre isso falarei mais à frente.
Entretanto, a insistência nas aulas num discurso centrado sobre o próprio valor da filosofia acaba por gerar desinteresse, senão mesmo desconfiança nos alunos, tornando-se penoso para os próprios professores. Não admira, pois, que o ensino da filosofia comece a parecer dispensável aos olhos daqueles que dificilmente compreendem a existência de uma disciplina, que, além de se fechar sobre si própria, não exibe conteúdos filosóficos claramente identificáveis.
***
A ausência de conteúdos filosóficos claramente identificáveis e a sua substituição por temas vagos e imprecisos é apenas a primeira e a mais importante consequência de uma desastrosa concepção instrumentalista da filosofia. Outra consequência é deixar de fazer sentido requerer o estudo de um instrumento de precisão e de rigor crítico, como é a lógica, para leccionar conteúdos vagos e imprecisos. Num panorama destes, a lógica parece estar a mais. O que, de resto, muitos professores — e manuais escolares — interpretam argutamente, dispensando completamente a lógica nas suas aulas mal acabam de a leccionar. Dificilmente se imagina qual será a sua utilidade na pesquisa e elaboração de trabalhos “preferencialmente de grupo e [de carácter] interdisciplinar”7 sobre “os direitos das mulheres como direitos humanos” ou sobre “o voluntariado e as novas dinâmicas sociais”.
A irrelevância cognitiva destes conteúdos — um dos riscos apontados atrás — acaba por expulsar do lugar crítico da razão as ferramentas críticas elementares que a lógica põe à disposição dos alunos: não se vê bem quais os problemas filosóficos a exigir uma formulação rigorosa, as teses filosóficas a merecer ser esclarecidas e discutidas criticamente ou os argumentos a ser avaliados quando se lecciona o tema do voluntariado e das novas dinâmicas sociais. Em contrapartida, a tendência para o lugar-comum jornalístico e para a expressão acrítica de opiniões alheias — o outro risco apontado atrás — encontram terreno fértil; não é a discussão filosófica que se procura, mas a “pesquisa documental” e a “organização de dossiers temáticos”8.
Assim se compreende por que razão a lógica não surge no início do 10.º ano, como seria de esperar de uma matéria que se diz ter um papel instrumental no ensino da filosofia. Não se ensina a trabalhar com as ferramentas do trabalho depois do trabalho feito, a não ser que o trabalho não exija, afinal, o uso de qualquer ferramenta. E assim se compreende também que tantos professores optem por ensinar a teoria silogística aristotélica em vez da lógica proposicional clássica. Se fossem realmente confrontados com a necessidade de recorrer à lógica para ensinar o que têm pela frente, certamente optariam pela proposicional, dado que a teoria silogística de Aristóteles não lhes seria de grande utilidade9. Podem, assim, leccionar tranquilamente a que lhes der menos trabalho a preparar. Dir-se-á que tal opção se prende simplesmente com a formação em lógica que a maior parte dos professores trazem da faculdade. Mas isso apenas mostra que o problema já vem de antes; não mostra que o diagnóstico está errado. Na verdade, os professores do secundário não são os únicos — talvez nem sequer os principais — responsáveis por esta tendência autodestrutiva do ensino da filosofia.
Até agora o cenário descrito é pouco simpático, tanto para a filosofia como para a lógica. Durante bastante tempo acreditei que havia um problema no modo como é ensinada a lógica no secundário e que, para ser mal ensinada, mais valia acabar com ela. Pensava então que o problema se devia apenas à formação dos professores, que não foram devidamente preparados para reconhecer o uso da lógica na discussão de problemas filosóficos de contornos bem definidos. Continuo a pensar que há um problema. Só que agora penso que ele não está tanto, afinal, no modo como a lógica é ensinada, mas principalmente no conflito entre a lógica que se ensina e muito do que resta para ensinar. O problema principal é, portanto, a lógica ser um órgão estranho num corpo que a rejeita.
Isto não significa que o ensino da lógica não seja muitas vezes deficiente. Mas se as ferramentas lógicas ensinadas viessem a ser efectivamente testadas na prática lectiva subsequente, as eventuais deficiências tornar-se-iam visíveis e o professor sentir-se-ia obrigado a corrigi-las, aprofundando os seus conhecimentos de lógica e procurando melhor formação na área. Liberto do teste, ele sente-se, na prática, liberto também dessa obrigação.
Sendo assim, o que acaba por fazer o professor quando lecciona lógica? Incapaz, tantas vezes, de mostrar a sua utilidade na prática lectiva concreta, ele próprio sente permanentemente a necessidade justificar o que está a ensinar. E, assim, passa-se com o ensino da lógica exactamente o que descrevi a propósito da própria disciplina de Filosofia. Se a lógica tivesse realmente aplicação prática na discussão dos problemas filosóficos, o discurso justificativo do seu valor seria naturalmente esvaziado e tornar-se-ia desnecessário. Mas, como isso não acontece, põem-se os alunos a ler textos onde se fala da importância da lógica, para eles verem como a lógica é importante. Em vez de se começar quanto antes a estudar lógica, fala-se muito sobre a própria lógica. É como se alguém que precisasse de aprender a conduzir automóvel para desenvolver a sua actividade profissional recebesse lições sobre a importância do automóvel no mundo actual, em vez de se meter no automóvel e ter lições de condução.
À falta de um efectivo estudo da lógica, não é, pois, surpreendente encontrar testes de lógica em que se fazem aos alunos perguntas como “Diga, de acordo com o texto, qual é a importância da lógica”. Como é óbvio, numa pergunta destas não se testa seja o que for de lógica; testa-se simplesmente a capacidade de o aluno repetir, por outras palavras, o que está no texto — convida-se o aluno ao acriticismo opinativo referido atrás. Essa não é uma competência lógica nem filosófica. Mesmo quando se avança para a compreensão da noção mais central da lógica, a noção de validade, trata-se tantas vezes de pedir simplesmente ao aluno que seja capaz de a decorar e repetir quando lhe for perguntado no teste “O que é um argumento válido?” E até o aluno incapaz de dizer se um argumento válido pode ter conclusão falsa é capaz de ter a cotação máxima na sua resposta. Tudo isto sem ter a mais pequena ideia do que é realmente a validade. A saber algo, o que o aluno sabe é cognitivamente irrelevante.
Chegados aqui, cabe perguntar: o que faz, então, a lógica nas aulas de Filosofia? E valerá realmente a pena ensinar lógica no secundário?
Apesar do desajuste entre a lógica e o resto do programa, ela acaba por ter efeitos colaterais positivos para a Filosofia. Ensinar lógica em Filosofia tem, ainda assim, duas grandes vantagens: 1) modera a tendência para transformar a disciplina de Filosofia numa espécie de educação cívica, introduzindo conteúdos que exigem, apesar de tudo, algum estudo, esforço e preparação académica; 2) contribui, com o rigor e seriedade académica que lhe são reconhecidos, para preservar algum do prestígio social da disciplina de Filosofia.
Ora, isto não é despiciendo, pois o crédito de que a lógica é fiadora permite, em certa medida, manter a Filosofia no currículo disciplinar do ensino secundário e acalentar a esperança de que, aos poucos e sem grandes revoluções, a disciplina de Filosofia recupere a sua natureza e o seu lugar. Assim, além de a lógica ser um instrumento poderoso ao serviço da discussão crítica própria da filosofia, ela faz pela imagem pública da Filosofia mais do que qualquer outro conteúdo programático. À falta de melhor explicação, acredito que a inclusão da lógica no programa da disciplina de Filosofia é de carácter mais psicológico do que lógico ou filosófico, correspondendo à necessidade pressentida de conferir dignidade académica a uma disciplina que se teme estar carente disso.
É importante sublinhar que as tendências para a irrelevância cognitiva e para o acriticismo opinativo, decorrentes de uma concepção instrumentalista do ensino, não se verificam apenas na disciplina de Filosofia. A ideologia dominante da educação para a cidadania — que acredito ser bem-intencionada —, visa instrumentalizar não apenas a disciplina de Filosofia, mas todas as outras disciplinas. Sucede que, dada a natureza dos conteúdos filosóficos, é mais fácil forçá-los nesse sentido do que nos casos da Matemática, da Física ou do Inglês: é teoricamente possível transformar todo o ensino da Filosofia em educação para a cidadania, mas não o é na Matemática, na Física ou no Inglês. A não ser que se entenda que educar para a cidadania seja aprender álgebra, geometria, termodinâmica, falar correctamente inglês e fazer derivações, entre outras coisas. Neste caso, educar para a cidadania seria aprender realmente Matemática, Física, Inglês e Filosofia, o que já não é pouco e me parece bastante mais aceitável.
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Tenho vindo a adoptar um tom bastante crítico, apontando sobretudo aspectos negativos que envolvem o ensino da lógica. Mas nem as causas dos problemas apontados são exclusivas da filosofia — o que daria para pensar um pouco mais — nem o cenário é ainda completamente desanimador.
Apesar do que referi sobre o Programa de Filosofia, convém não exagerar a ponto de ser injusto com ele. A verdade é que, se quisermos, ainda lá podemos encontrar alguns conteúdos filosóficos centrais — da metafísica, da ética, da epistemologia e da filosofia da ciência —, para a discussão crítica e racional dos quais o estudo de algumas noções elementares de lógica pode fazer muita diferença. Sendo consensualmente reconhecido o seu carácter instrumental para o ensino da filosofia, a lógica pode tornar a discussão dos problemas, teorias e argumentos filosóficos mais disciplinada, mais esclarecedora e mais crítica — em suma, cognitivamente mais proveitosa. Mas, para isso, não basta ensinar lógica, mesmo que a lógica do programa seja bem ensinada. É preciso utilizar efectivamente esse instrumento na discussão filosófica subsequente. Caso contrário, o instrumento não tem utilidade e traem-se as expectativas criadas nos alunos.
Tenho encontrado colegas professores de Filosofia que, apesar de saberem explicar de forma cientificamente irrepreensível as noções elementares da lógica proposicional clássica, confessam não tirar grande proveito disso quando passam para a discussão das questões filosóficas propriamente ditas. Há manuais que, na parte da lógica, recorrem abundantemente a exemplos, mas raramente são exemplos de afirmações ou argumentos filosóficos. Ora, penso que tem de se dar o passo seguinte, pelo que pretendo adoptar a partir daqui um tom positivo, tentando mostrar com alguns exemplos como se pode aplicar o que se aprendeu em lógica para clarificar e avaliar teses e argumentos filosóficos, quer se trate da discussão acerca do livre-arbítrio e do determinismo, da ética, da filosofia da religião, da epistemologia ou da filosofia da ciência.
Em nenhum dos exemplos que apresento se recorre à teoria silogística aristotélica. A razão é simples e já foi sugerida: a teoria silogística aristotélica quase não tem aplicação na discussão filosófica. De facto, raramente argumentamos com silogismos, sobretudo quando a argumentação se torna mais sofisticada, como acontece frequentemente na filosofia. Mesmo a lógica proposicional clássica tem as suas limitações, sendo desejável ensinar também algumas noções muito elementares de lógica de predicados, até para se perceber melhor em que casos é útil aplicar a lógica proposicional e em que casos tem de se recorrer à quantificação e à linguagem da lógica de predicados.
Os exemplos apresentados procuram mostrar como a lógica formal, mas também a informal, podem ajudar-nos na discussão filosófica, seja ajudando a formular problemas, a esclarecer teses ou a identificar, reconstruir e avaliar argumentos. Alguns dos exemplos são adaptados das minhas aulas e outros dos livros didácticos de que sou co-autor10 e todos incidem sobre conteúdos filosóficos do Programa de Filosofia.

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