sexta-feira, 22 de outubro de 2010

223) O Fariseu, por Desidério Murcho


Tenho aqui um desses textos já "empoeirados" à espera de sua publicação n'O Arqueiro Prudente. Em momento de debate, algo "bom para se pensar" pode ser retirado das palavras abaixo.

Vinícius Portella

Porto Alegre,
22 0349 out 2010.

O fariseu

Desidério Murcho
A filosofia que é transmitida no nosso ensino não forma filósofos, mas fariseus. O Fariseu dá-se ares de filósofo porque adquiriu a capacidade para citar muitos nomes de muitos filósofos, e para enrolar palavras de aspecto filosófico em discursos retorcidos e turvos. Mas a propriedade proeminente do Fariseu é o olhar irónico que lança ao próprio projecto da filosofia. Vejamos o Fariseu em acção.
O professor competente que procura começar um seminário sobre filosofia da religião, por exemplo, vê-se imediatamente confrontado com o Fariseu. A filosofia da religião é uma área vasta da filosofia contemporânea e clássica. Aborda vários problemas, discute vários argumentos e há várias teorias. O estudo sério da filosofia da religião consiste em compreender claramente os diferentes problemas da filosofia da religião, formular claramente os argumentos e as teorias dos diferentes filósofos sobre esses problemas e — este é o fim último — ter uma posição própria sobre a matéria.
Mas para o Fariseu nada disto faz sentido. Um dos problemas fundamentais da filosofia da religião, e que mais facilmente se compreende e que é por isso escolhido em geral em cursos competentes de introdução à filosofia, é a existência de Deus: Será que Deus existe? Mas para o Fariseu este problema é uma tolice. Discutir a existência de Deus é um disparate porque em última análise a fé é algo do foro pessoal e as nossas convicções mais queridas não são abaladas pelos argumentos dos filósofos.
O Fariseu não está apoiado em quaisquer estudos empíricos, que lhe mostrem que é impossível as pessoas serem razoáveis e exigirem às suas convicções mais queridas que passem pelo crivo da razão. O que o Fariseu quer é não colocar em causa as suas convicções mais queridas; e é para ele um incómodo que haja pessoas no mundo que procurem fazer passar pelo crivo do estudo rigoroso as suas próprias convicções mais queridas. O que incomoda o Fariseu, em última análise, é haver afinal filósofos. Pois essa é a tarefa dos filósofos e dos estudantes de filosofia: o exame minucioso e rigoroso das suas próprias convicções. Se virmos bem, foi o Fariseu que condenou Sócrates à morte, porque Sócrates era filósofo e porque ser filósofo é examinar as nossas convicções mais queridas: "Não vale a pena viver uma vida por examinar", declarou Sócrates na Apologia.
Mas isto é impensável para o Fariseu. E ele tem boas razões para isso. Afinal, a filosofia farisaica é muito mais fácil. Consiste em falar de longe das palavras dos filósofos, mas nunca entrar na discussão das nossas convicções mais queridas. O Fariseu derrota Sócrates completamente. Sócrates aproxima-se do Fariseu e pergunta-lhe o que é a justiça, ou o conhecimento, ou a fé. E o Fariseu responde-lhe, com toda a razão: "Vai-te, Sócrates! Não tens nada a ver com isso! Que penso eu dessas coisas? Isso é do meu foro íntimo! Mas se quiseres, posso dizer-te com mil citações o que pensaram os pretensos grandes pensadores sobre essas tolices." Em suma, a filosofia do Fariseu é parasita; não é um pensamento autêntico, que se joga e arrisca; é um pensamento calculista, frio, distanciado, que considera indelicado perguntar de frente a um estudante: "Pensas que Platão tem razão? Pensas que Deus existe? Pensas que o conhecimento é crença justificada verdadeira? Pensas que o aborto é permissível?"
Para o Fariseu todas estas perguntas são impensáveis. São perigosas. Deviam mesmo ser proibidas. E ele assim faz. Quando o Fariseu chega a professor, é o Professor Fariseu, e impede que os seus estudantes possam dizer o que pensam e que possam defender com argumentos claros o que pensam. O Professor Fariseu começa por não ensinar os estudantes a pensar e a argumentar; até porque ele também não sabe fazer tal coisa. As subtilezas dos argumentos e das teorias dos filósofos escapam-lhe. Não pode ensinar isso aos seus estudantes. Nem quer. Tudo o que quer transmitir aos estudantes é meia dúzia de ideias feitas, confortáveis e cortadas à medida: "A fé é do foro pessoal; não há problemas da filosofia, só há textos filosóficos e o nosso papel não é pensar sobre os problemas filosóficos e ter uma posição própria, crítica e fundamentada, mas antes repetir o que disseram os filósofos mortos; a ciência é o Mal; a razão também; a discussão de ideias também; a filosofia também."
Quando um aluno mais inteligente pergunta inocentemente ao Professor Fariseu se ele pensa que Deus existe, numa aula em que estejam a estudar um texto de Tomás de Aquino que apresenta vários argumentos a favor de Deus, ou quando um aluno pergunta o que pensa o Professor Fariseu que é a verdade quando se está a estudar um texto de Aristóteles sobre a verdade, o Professor Fariseu grita, perturbado: "O que penso eu? Não penso nada! Por que razão havia de pensar alguma coisa? Nós não estamos aqui para dizer o que pensamos, mas para dizer o que pensavam os filósofos mortos e enterrados, pacíficos nos seus túmulos, graças ao Senhor!"
E o Professor Fariseu tem legiões de estudantes fariseus, dispostos a repetir acriticamente todas as jogadas farisaicas do Professor Fariseu, jogadas que têm por objectivo último evitar a discussão de ideias, evitar o incómodo de ver as nossas convicções perante o tribunal da razão. O Estudante Fariseu vai gritar em todo o lado as grandes verdades reveladas da anti-filosofia farisaica, vai embarcar com gosto nas especulações turvas e pacíficas de sociologia e psicologia barata, vai decorar todas as passagens dos grandes Fariseus do passado que peroraram contra a filosofia e contra a razão e contra tudo o que é razoável, e que exaltaram antes a fé cega, a convicção surda a argumentos, a teoria tonta, os argumentos infanto-juvenis. O Professor Fariseu sorri, finalmente, satisfeito; o seu papel no ensino da filosofia está cumprido. Conseguiu fazer implodir uma tradição com 2500 anos e transformá-la num palavreado turvo anódino e pacífico, mas com tiradas de aspecto profundo e revolucionário. "São só palavras", pensa o Professor Fariseu satisfeito, "são só palavras".
A questão interessante é esta: como é possível que o Fariseu, anti-filósofo, anti-discussão, anti-filosofia, anti-racional, e que ignora os problemas, as teorias e os argumentos centrais da filosofia, clássica e contemporânea, singre no nosso ensino? Deixo o leitor com esta questão singela, na esperança de que comece a perceber o que está em causa quando há pessoas a lutar pelo direito a uma forma não farisaica de estudar e ensinar filosofia.

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