Acabo de terminar a leitura do livro O País das Neves, de Yasunari Kawabata. Deixo meus comentários para depois. Apenas ressalto quão bem o autor pinta suas imagens, valendo-se de poucas pinceladas. A composição do quadro é muito apurada e, ao término da leitura, algo paira no ar...
Vinícius Portella
Porto Alegre,
10 0148 maio 2010.
O país das neves / A casa das belas adormecidas
Morte e erotismo são os dois temas que se amalgamam e cimentam em essência a literatura do japonês Yasunari Kawabata, Nobel de 1968, cuja obra está sendo relançada no Brasil com dois de seus mais importantes livros: “O País das neves” (1937) e “A casa das belas adormecidas” (1960). A dolorida noção da transitoriedade da vida, presente nestes e em outros romances dele, é cifrada por um olhar sensível, que dispensa à narrativa tons e semitons nuançados, como se o texto fosse uma pintura impressionista cunhada em sensações, em sutilezas, em subentendidos.
Formado em literatura pela Universidade Imperial de Tóquio, o escritor foi um dos fundadores da revista “Bungei Jidai”, publicação de vanguarda influenciada pelo surrealismo, e destacado integrante da chamada Shinkankuha, corrente neo-sensorialista que revolucionou as letras japonesas, opondo-se ao realismo clássico. Kawabata e seus colegas professavam a captura mais direta dos sentimentos, apostando na rarefação narrativa e no lirismo.
Em ambos os livros, traduzidos diretamente do japonês, esses traços são evidentes. No primeiro, o leitor é posto diante de um triângulo amoroso apenas sugerido entre um intelectual de meia-idade que mora em Tóquio, uma gueixa e uma jovem, cujo rosto ficará para sempre fixado na mente do protagonista, desde que o vislumbrou refletido na janela embaçada do trem em que viajava para a estação termal do País das Neves.
As mornas relações entre os três suscitam uma inércia que parece contradizer os desejos reprimidos que os envolvem, explorados no livro sem dramaticidade. Ao contrário: o desenrolar da história se dá sob a égide da improbabilidade de que seja acesa a fagulha necessária para efetivar algum ponto de ruptura entre eles e, à medida que a narrativa se alonga, a obsessiva descrição dos efeitos do tempo sobre a natureza somente reforça tal perspectiva. Há uma espécie de apatia branca que transborda do inverno rigoroso para o interior dos personagens.
Kawabata investe na tensão entre a natureza — em si “pura” e cuja percepção seria capaz de suspender o instante, fixando-o no perene — e o verdadeiro turbilhão de conflitos que circunda (e por vezes paralisa) o homem. Por intermédio dos personagens, sublinha o poder depurador da natureza. Por exemplo, quando revela como “era agradável”, para o intelectual, “pensar no sol da manhã batendo no linho branco estendido sobre a neve espessa, na neve ou no tecido, ambos tingidos de vermelho por sua luz, pois lhe parecia que a sujeira do verão seria totalmente eliminada e que o seu próprio ser ficaria purificado”. Outro aspecto importante são as referências à cultura japonesa, vertida em vestuário e rituais definidores de uma rígida hierarquia. É uma pena que, apesar das notas de rodapé, essa riqueza possivelmente vá fugir ao leitor brasileiro.
No sensual “A casa das belas adormecidas”, a tão ansiada “pureza” desloca-se da natureza para a figura feminina. O protagonista da trama é Eguchi, que, ao completar 67 anos, resolve conhecer a tal casa que dá nome ao livro. Trata-se de local onde anciãos passam a noite ao lado de moças que, entorpecidas por forte sedativo, dormem profundamente.
A metáfora da beleza e da vitalidade roubadas das meninas pelos freqüentadores da casa — e pelo protagonista — é a força-motriz do romance. “Ali eles não sentiriam apenas o pesar da velhice, sua fealdade e miséria, mas estariam se sentindo repletos da dádiva da vida jovem. Para um homem no extremo limite da sua velhice, não haveria um momento em que pudesse se esquecer por completo de si mesmo, a não ser quando envolvido por inteiro pelo corpo da jovem mulher”, observa o narrador, para quem “a pele e o cheiro das jovens garotas seriam, então, o perdão e o consolo desses pobres velhotes”.
Assim como o intelectual, quando amargurado, dedica-se a passeios pelo campos do País das Neves, os idosos recorrem à casa das belas adormecidas. “Quando se deitavam em contato com a nudez da jovem mulher, os sentimentos que ressurgiam do fundo do seus âmagos talvez não fossem apenas o medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida. Talvez houvesse neles também certo arrependimento pelos pecados cometidos, ou pela infelicidade no lar, coisa muito comum nas famílias dos vencedores”, diz o narrador.
Cada garota com quem Eguchi divide a cama trará a recordação de uma mulher que passou por sua vida. Cada uma suscita imagens que a memória cunhou de forma minuciosa e definitiva, e retornam nesse período outonal, quando a serenidade permite o balanço do passado. As moças representam, então, mais um espelho (no caso, retrovisor), entre os tantos que distinguem a obra de Kawabata. Que, igualmente a seus personagens, namorou por toda a existência a solidão. E levou sua obsessão pela morte até o desenlace trágico: o suicídio, com a ajuda de uma mangueira de gás, em 1972.
Resenha publicada no suplemento Prosa & Verso (O Globo)
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