Mercado político e mercados econômicos
Marx e as eleições brasileiras
Paulo Roberto de Almeida
Uma tendência bem conhecida da ciência política consiste em fazer uma análise econômica dos processos eleitorais e dos sistemas políticos. Embora se possa dizer que metodologias e problemas podem ser aproximados, para fins de análise e de interpretação, o fato é que existem diversos elementos diferenciadores que fazem com que o mercado político não seja o exato equivalente do mercado de bens e serviços correntes. Este último é, em princípio, caracterizado pela atomização dos ofertantes e pela livre disposição de seus recursos da parte dos demandantes, ao passo que o primeiro se caracteriza por tendências bem claras ao monopólio e à exclusão.
Independentemente, porém, do grande número de variáveis que concorrem para diferenciar um do outro, pode-se dizer que mercado político não é igual ao mercado de bens e serviços correntes por um motivo muito simples: embora o Estado possa interferir tanto num quanto noutro – por meio de regras quanto ao seu funcionamento, ou por meio de impostos sobre as transações, por exemplo –, nos mercados puramente econômicos, os compradores dispõem (pelo menos nos sistemas capitalistas e razoavelmente democráticos) de liberdade completa para determinar quantidades, tipos e formatos das prestações dos bens e serviços aos quais pretendem alocar seus ativos financeiros. O consumidor é, em princípio, soberano nas suas escolhas e atua com base nas informações disponibilizadas pelos produtores, que teoricamente concorrem entre si pelas preferências do primeiro. Economistas liberais tendem a considerar a economia dos livres mercados como sendo uma espécie de “ditadura do consumidor”, o que se aproxima apenas parcialmente da realidade (já que cartéis, monopólios, coalizões e colusões de produtores deformam as condições de concorrência, em detrimento dos consumidores, obviamente). Na prática, todos os mercados são imperfeitos.
Nos mercados políticos, ao contrário dos de natureza econômica (ou com bem maior ênfase do que nestes), o Estado é, não apenas um interlocutor incontornável e um regulador necessário, como atua, também, como agente de seus próprios interesses, obviamente não enquanto Estado, mas enquanto governo. O Estado é, em grande medida, uma figura abstrata, virtual ou, em certo sentido, quase ficcional; ele existe, obviamente pelas suas instituições e pelo conjunto de leis e normas que regulam a ação de seus agentes permanentes, mas se expressa de modo muito mais afirmado enquanto ator de primeiro plano em suas roupagens de governo e de coalizão de forças a serviço dos partidos e dos grupos de interesse representados e ocupando suas instituições dotadas de vontade política.
Nessa condição, o Estado deixa de ser abstrato para passar a representar interesses políticos, econômicos e projetos tangíveis e intangíveis vinculados aos líderes políticos que ocupam temporariamente suas alavancas de comando. Isto é básico e elementar, conhecido de qualquer estudante de graduação que tenha lido seus manuais de ciência política ou debruçado-se sobre a obra de Max Weber. Aliás, até mesmo Marx, nas páginas muito rudimentares do Manifesto Comunista, ou naquelas melhor elaboradas do 18 Brumário, já tinha detectado essa captura do Estado por forças políticas ou por personagens excepcionais – nem todos representando as “elites” tradicionais – que se movimentam no grande palco das lutas pelo poder.
Uma interpretação marxista dos embates eleitorais no Brasil de 2010
Justamente, se Marx fosse chamado a reescrever suas obras políticas mais conhecidas – como os já citados Manifesto e 18 Brumário, acrescidos do Luta de Classes na França – adaptando-as ao cenário do Brasil atual, eis o que ele talvez redigisse, como síntese da campanha eleitoral em curso e da própria conjuntura.
Se considerarmos o estado atual da luta de classes no Brasil, depois de anos e anos de afirmação de uma liderança cesarista e carismática, o que se pode dizer é que todas as classes se renderam ao Bonaparte do momento. Não ocorreu, para todos os efeitos, qualquer golpe na trajetória política recente do país, algo inesperado como um raio caído de um céu azul. Não; tudo foi o resultado racional-legal da lenta ascensão de classes pouco trabalhadoras ao pináculo do poder, o produto final da lenta acumulação de forças pelo partido da reforma conservadora. O final lógico desse teatro de lutas contra os burgueses liberais nos últimos anos já era o esperado: o manto imperial caiu, finalmente, nos ombros do pequeno Bonaparte, sem sequer algum gesto dramático, menos ainda com qualquer sinal de tragédia. Foi, assim, um triunfo de comédia.
Todas as classes, com exceção de uma fração extremamente reduzida de ideólogos da pequena burguesia libertária, se renderam ao líder aclamado; a minoria que o ataca não tem qualquer força social atrás de si para contestar o seu domínio completo sobre a sociedade. A máquina burocrático-sindical já estava ganha desde o início, pois foi dela mesmo que o novo Cesar emergiu para uma ascensão lenta, mas irresistível. Os movimentos desorganizados do lumpesinato e do proletariado não sindicalizado foram os que convergiram em segundo lugar, pois eles encontraram no Tesouro da República a justa compensação pela escolha judiciosa que fizeram. Não foi preciso repetir a história, sequer como farsa, no caso da grande burguesia industrial e dos representantes da alta finança: eles já tinham sido convencidos, desde antes da ascensão do imperador, de que seus interesses de classe seriam regiamente compensados, como de fato o foram, pela fidelidade demonstrada ao novo esquema de poder. Todos eles foram colocados na mesma categoria de apoiadores, meras figuras decorativas na urna de votos do novo Cesar, como se fossem simples unidades indistintas de um grande saco de batatas.
O fato é que até mesmo o antigo partido da reforma conservadora foi parar nesse saco de batatas, e virou o partido da Ordem, submisso como todos os outros ao poder do chefe supremo. As bases de seu poder são relativamente transparentes, pois basta seguir o itinerário do dinheiro que escorre dos cofres públicos – isto é, dos bolsos da burguesia e da pequena burguesia, dos grandes proprietários fundiários, dos caixas das empresas da burguesia industrial, e até mesmo dos parcos tostões do proletariado e seus aliados menores. Temos, em primeiro lugar, a plutocracia financeira, aquela que sempre se opôs ao partido da reforma, quando este era desestabilizador, mas que logo se acomodou, ao constatar que o grande líder propunha, na verdade, uma coalizão diferente para manter o mesmo esquema de poder real; ela foi contemplada, como sempre, com os juros da dívida pública, sem precisar fazer qualquer esforço no mercado de capitais ou na busca de clientes para seus empréstimos extorsivos. A grande burguesia das fábricas e dos negócios comerciais também soube encontrar o seu nicho no novo esquema de poder: um mercantilismo renascido com um Estado ainda mais forte, capaz de dispensar empréstimos facilitados, isenções fiscais, tarifas protetoras e toda sorte de prebendas e subsídios que tinham uma existência mais modesta na antiga República neoliberal.
Vem em seguida a nova aristocracia sindical, que já não era operária havia anos, provavelmente a décadas; sua fração burocrática converteu-se em parte integrante da nomenklatura estatal, a nova classe privilegiada, que alguém já chamou de “burguesia do capital alheio”. A maior parte, porém, continuou nas corporações sindicais, agora locupletando-se de fundos públicos, que lhe são repassados sem qualquer controle. Junto com os militantes do antigo partido da reforma, eles constituem os elos mais relevantes do novo peronismo em construção, uma nova força política que é puro movimento, sem qualquer doutrina ou construção teórica mais elaborada. Os aliados da academia, que poderiam fornecer uma base intelectual para o partido da reforma, os universitários gramscianos, estes parecem singularmente estéreis na produção de novas idéias, pois ficam repetindo velhos slogans do socialismo do século 19, sem qualquer originalidade ou refinamento. São tão atrasados, e alienados, esses acadêmicos repetitivos, que terminaram por ver num coronel golpista, de notórias tendências fascistas, um líder progressista do novo socialismo; o êmulo de Mussolini pretende que o seu socialismo seja do século 21, quando este nada mais constitui senão uma confusão mental e uma construção estatal digna do que havia de pior no sovietismo esclerosado.
Outros componentes do mesmo saco de batatas são os funcionários públicos, alguns verdadeiros mandarins, a maioria simples beneficiários da prodigalidade estatal, que, na média, recebem o dobro do que ganhariam na iniciativa privada, para níveis de produtividade que são, na média, menos da metade daquelas do setor privado. Figuram ainda no saco, finalmente, os recipientes do maior programa social do mundo, que vem a ser, também, um grande curral eleitoral: o lumpesinato, de forma geral, e os vários lumpens urbanos, em particular, com alguns pequeno-burgueses espertalhões aqui e ali. Não se deve esquecer, tampouco, tubérculos igualmente vistosos, como os beneficiários de bolsas para diversas categoriais sociais ou as cotas para os representantes do Apartheid em formação, os promotores do novo racismo oficial.
Ficam de fora do saco de batatas apenas e tão somente 3 ou 4% do eleitorado, representado politicamente por figuras teimosas, que recusam inexplicavelmente o mito do demiurgo e que pretendem continuar o combate de retaguarda, sem qualquer esperança de reverter o curso do processo político no futuro previsível. Esses novos mencheviques intelectuais também fazem sua própria história, mesmo se eles ainda não têm consciência disso: eles não podem, contudo, esperar fazer sua revolução a partir de um passado já enterrado; apenas em direção ao futuro, embora o caminho seja longo e os resultados muito incertos.
O que parece certo é que a mistura de pequeno Napoleão com um Perón improvisado também terá um dia sua estátua derrubada do alto da coluna Vendôme, não tanto como resultado de uma nova luta de foices e martelos, mas como o produto de uma lenta evolução educacional. Esta é a revolução mais difícil de ser provocada, mas constitui, legitimamente, o único processo revolucionário de que o Brasil necessita.
Zhengzhou, 24.08.2010; Shanghai, 26.08.2010
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A frase bonapartista:
'Ainda tenho caneta para fazer miséria neste País', diz Lula
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