Evaldo Cabral de Mello lança duas obras sobre períodos distintos da formação do Brasil
24 de julho de 2010 | 6h 00
Evaldo Cabral de Mello organizou os livros 'Brasil Holandês' e 'Joaquim Nabuco Essencial'. Foto: Fábio Motta/AE |
Antonio Gonçalves Filho
SÃO PAULO - O historiador Evaldo Cabral de Mello publicou há 35 anos seu primeiro livro, Olinda Restaurada, em que abordava de forma original os anos da ocupação holandesa no Brasil, analisando as particularidades do conflito entre holandeses e a população luso-brasileira de Pernambuco. Aos 74 anos, o ex-diplomata retoma o tema com fôlego ainda maior em O Brasil Holandês, que a Companhia das Letras lança junto a um outro livro, dedicado ao político e escritor abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), ambos inaugurando o selo Penguin/Companhia das Letras.
Joaquim Nabuco Essencial é uma compilação de textos do autor de O Abolicionismo (1883), que está sendo relançado em edição de bolso pela Bestbolso (Editora Best Seller). Nabuco é estudado por Cabral de Mello há muitos anos, assim como o holandês Maurício de Nassau, personagem central de O Brasil Holandês, que havia sido biografado pelo historiador em Nassau: Governador do Brasil Holandês (2006). Sobre os documentos inéditos pesquisados por ele para seu novo livro, Evaldo Cabral de Mello falou ao Sabático, enfatizando que o padre Antonio Vieira foi um entreguista e que nunca interessou aos portugueses ou holandeses revelar quem foi o real Calabar, que se bandeou para o lado dos últimos.
O senhor diz, no prefácio de O Brasil Holandês, que organizar uma coletânea de textos do período holandês pode causar certo embaraço, motivado pela escolha entre documentos oficiais e relatos anônimos. Como fez para conseguir a equilibrada junção de depoimentos no episódio Calabar?
Há relativamente pouca coisa sobre Calabar. Nesse caso me concentrei nos testemunhos da época, como o de Manuel Calado, que o conheceu, e desse mercenário inglês, Pudsey, que foi companheiro de armas quando Calabar passou para o lado holandês. Espiei a correspondência oficial holandesa, mas essa apenas o menciona, e ainda assim não frequentemente. É preciso consultar as memórias do quarto donatário de Pernambuco, que atribui especialmente a Calabar a iniciativa de uma série de operações militares, sobretudo navais, que foram fundamentais para o êxito holandês. No fundo, o que se tem é um desequilíbrio: temos poucas informações do lado holandês e muitas do lado português, ambos suspeitos, evidentemente. As fontes holandeses que se carteavam com a metrópole não tinham oficiais interessados em sublinhar a atuação de um mestiço brasileiro (Calabar era mameluco). Eles considerariam isso ofensivo à capacidade profissional deles. Já o lado luso-brasileiro estava à procura de um bode expiatório, de modo que tinha interesse em exagerar o papel de Calabar.
Os sete anos de governo de Maurício de Nassau, segundo o livro, constituíram um período de relativa paz, uma espécie de Idade de Ouro do Brasil. Como o senhor imagina o Brasil se ele não tivesse voltado à Holanda? O calvinismo teria transformado o País numa outra nação?
Não creio. Eles dependiam da comunidade luso-brasileira para botar o Brasil para funcionar. A Holanda era um dos países mais prósperos da Europa. Não houve praticamente imigração maciça de holandeses para o Brasil. Muitos dos soldados da Companhia das Índias eram mercenários ingleses, franceses, alemães e poloneses. Nunca se estabeleceu uma corrente migratória holandesa estável e constante para o Brasil que permitisse a longo prazo "holandizar" o Nordeste. Eles ficaram sempre dependendo da contribuição econômica da comunidade luso-brasileira, que controlava a maior parte dos engenhos.
Num balanço desses sete anos de governo, qual a conclusão a que o senhor chegou em relação a Nassau?
Em relação a Nassau não há dúvida de que se tratava de um homem de Estado de grandes qualidades. Ele foi sobretudo um administrador e um homem de bom gosto, mas não um grande militar no sentido heroico da palavra. Era um profissional competente, mas não muito mais do que isso.
O equilíbrio estratégico no Brasil foi ameaçado com o golpe de Estado que, em 1640, colocou um ponto final nos 60 anos de domínio espanhol em Portugal, transformando-o em aliado dos Países Baixos na guerra contra a Espanha. Isso diminuiu o antagonismo entre os moradores portugueses de Olinda, a Igreja Reformada e os holandeses?
Não, pelo contrário. Há uma carta, de setembro 1642, em que Nassau diz expressamente que a restauração da independência portuguesa constituía uma ameaça ao futuro do Brasil holandês, porque ela daria o exemplo para que o mesmo acontecesse no País, incitando a comunidade luso-brasileira a também querer a restauração da coroa portuguesa. Ele teve uma visão bastante clara do que viria acontecer no futuro - e isso três anos antes de arrebentar a revolução. Foi de uma lucidez extraordinária.
Muitos historiadores estrangeiros, entre eles Robert Smith, creditam ao governo nassoviano o mérito de ter construído a primeira cidade digna deste nome na América portuguesa. As obras de Nassau não poderiam ter sido produzidas pelos habitantes luso-brasileiros de Olinda?
Não, porque a cultura urbana portuguesa era completamente diferente da holandesa, muito mais avançada. A Holanda era basicamente um país de cultura urbana. Mais da metade da população holandesa vivia no meio urbano. Era o país mais urbanizado da Europa Ocidental, muito mais que a França e a Inglaterra.
Sabe-se pouco sobre a comunidade judaica do Brasil holandês, composta majoritariamente de judeus portugueses emigrados para Amsterdã. Qual a marca deixada pela comunidade além das práticas comerciais?
Ela deixou marcas importantes. A primeira sinagoga das Américas é a do Recife. Há, inclusive, um grande poeta sefardita holandês que escreveu um poema sobre o sítio do Recife pelos portugueses. O problema todo é que a comunidade judaica tinha de enfrentar a hostilidade em duas frentes: a dos portugueses e dos holandeses, que não gostavam da concorrência econômica dos judeus que, por saber português, eram os intermediários incontornáveis nos negócios. Então, muitos viraram corretores, fazendo a ponte entre o produtor rural e o comerciante da cidade.
Já as relações entre os holandeses e os índios parecem ter maiores registros. Na breve descrição dos tapuias por Gerbrantsz Hulck, em 1653, revela-se um deslumbramento com o antípoda que poderia ter resultado numa tentativa de miscigenação, a exemplo dos portugueses. Por que os holandeses eram mais resistentes a esse trânsito cultural?
Porque eram calvinistas. Como toda religião que se sente insegura, o calvinismo primava pelo radicalismo. Nassau, no entanto, nunca se deixou levar pelos ministros calvinistas. Eles pediam coisas, faziam pressão e o Nassau respondia que ia providenciar, mas não fazia nada. Uma coisa ele recomenda numa carta à junta que o sucedeu: não mexer em assunto religioso, pois era a coisa que mais sensibilizava os portugueses. Ele recomendava não convertê-los, respeitar o status quo, a licença tácita de culto católico que tinham os portugueses no interior do Brasil holandês, mas não no Recife. Esses se consideravam injustiçados porque acabariam ficando sem o clero se o governo holandês não permitisse mais a entrada de padres.
Os franceses, especialmente Pierre Moreau, deixaram registrada sua indignação ao modo bárbaro como os escravos eram tratados no Brasil. Houve algum progresso com a intervenção dos ministros calvinistas?
As providências tomadas pelo governo de Nassau contra os quilombos tinham algo a ver com a imitação que as comunidades negras dos Palmares faziam da religião e do modo de governar dos portugueses. Não me recordo de nenhum registro, de nenhuma intervenção do governo holandês no aspecto privado das relações senhor e escravo nos engenhos. O que houve foi que Nassau teve uma atitude benigna em relação aos soldados negros que haviam fugido e militado no exército holandês, inclusive alforriando alguns deles. Mas os holandeses não queriam interferir na administração dos engenhos, pois sabiam que isso iria acarretar prejuízos ao comércio. Eles eram completamente pragmáticos. Estavam ali para colocar a coisa para funcionar. Não queriam mexer muito na situação. Eles mandaram, sim, uma expedição para reprimir os quilombos de Palmares, isso no fim do governo de Nassau, mas esse tipo de expedição foi inútil, porque era uma guerra de guerrilhas. Chegavam os holandeses, destruíam os mucambos, as populações dos quilombos se dispersavam e depois voltavam e se concentravam de novo. Como elas estavam na extremidade sudoeste do Brasil holandês, era difícil. Só os portugueses, e ainda assim no fim do século 17, é que conseguiram, colocando guarnições permanentes de soldados paulistas e índios naquela região dos Palmares.
A carestia do Brasil holandês aliada à falência da Companhia das Índias foram decisivas para o ocaso do governo de Nassau. Ele gastava demais e governava de menos ou a restauração da independência portuguesa teve um papel decisivo na sua queda?
O papel decisivo foi o da direção da Companhia das Índias, que nunca engoliu a indicação dele, imposta pelo primo, o príncipe de Orange. Ao mesmo tempo em que houve a paz entre Portugal e Holanda, em 1641, eles tinham um belo pretexto para tirar Nassau, embora este alertasse que a situação iria ficar perigosa. Quanto à crise econômica, era realmente incontrolável. Houve uma queda forte do preço do açúcar e um endividamento adoidado por parte da comunidade luso-brasileira, de modo que não havia como pagar. Quando a Companhia da Índias assumiu as dívidas, ela só encampou a de 25 senhores de engenho, no total de 160. E eles tinham apenas três anos para pagar. Era uma situação sem saída.
Com a partida de Nassau, os conspiradores queriam massacrar as autoridades neerlandesas, reprisando a noite de São Bartolomeu parisiense. A insurreição de 1645 levou o governo português a uma posição cautelosa e um dos articuladores da paz, Antonio Vieira, dizia que Portugal perderia a guerra contra a Holanda. Como o senhor definiria o papel de Vieira nessa história?
No fim da vida, o padre Vieira, conselheiro de d. João IV, disse que aquilo não era opinião dele, mas sim do rei. É verdade, mas foi ele quem soprou em seu ouvido aquelas ideias de que Portugal perderia a guerra. Foi o historiador Afonso Pena Jr., o filho do ex-presidente, quem revelou que o padre Vieira, desde 1640, antes da independência portuguesa, portanto, já defendia num sermão a entrega do Brasil aos holandeses. Foi um entreguista crônico.
Sobre Joaquim Nabuco, um dos textos dele selecionados pelo senhor para Nabuco Essencial mostra que ele acusava Portugal de ter mandado para cá a escória social do país. Nabuco, um abolicionista, teria uma certa crença eugênica?
Sei que há essa teoria por aí. Numa conversa com Raymond Aron sobre as relações de d. Pedro II com Gobineau, ele lembrou que, no século 19, todo mundo era racista. Devo dizer a favor de Nabuco que, quando você lê O Abolicionismo com cuidado, vê que ele não põe a culpa na raça negra africana como tal, mas na instituição da escravidão. Se Nabuco foi racista, ele escondeu bem. Não acredito que tenha sido. A perspectiva dele não era racial. Uma das razões da modernidade de Nabuco hoje é o relativo arcaísmo do conhecimento sociológico dele. Quando você lê seu diário, vê que não tinha grande leituras sociológicas, de modo que ele escapou a tudo o que era mania sociológica na Europa e que marcaria a obra de Euclides da Cunha. O Abolicionismo é um livro de propaganda em que faz uma análise dos efeitos da escravidão e ele poderia ter sido escrito por qualquer pessoa culta que conhecesse o Brasil e não fosse necessariamente um sociólogo.
Por que o senhor privilegiou no livro os textos do Nabuco abolicionista e escritor político, e praticamente ignorou o historiador e homem religioso?
Eu não ignorei o historiador. O que ignorei foi o poeta da juventude, o religioso, o diplomata e o literato, porque reputo que são facetas menos importantes que essas duas. Como a obra completa dele tem 18 volumes, tinha um dilema: ou colocava um bocadinho de cada livro e o leitor perderia a complexidade das análises dele ou então escolhia um ou dois temas, ele como político e como reformador social, que foram as facetas mais importantes.
Nabuco fala do imperador sempre com relutância, dizendo-se um escritor cristão ingrato se derrubasse a monarquia um ano depois da lei de 13 de maio. O senhor diria que ele foi um homem dividido, abjurando de certo modo as palavras fortes de O Abolicionismo para tentar uma espécie de conciliação?
Dividido ele devia ser, sem dúvida, pois era monarquista convicto. Ao mesmo tempo, a urgência da reforma abolicionista era tal que, evidentemente, não é possível que Nabuco não tenha encarado, dois ou três anos antes da Abolição, a possibilidade desta levar de vencida o trono. É um problema de prioridade: o que era mais importante para ele, dar a liberdade aos escravos, que era uma reforma social em toda a extensão da palavra, ou fazer uma reforma meramente política como a que propôs - sem êxito - a federalização da monarquia, que não interessou nem aos republicanos, porque queriam a República Federalista, nem aos monárquicos, que ainda estavam apegados ao regime unitário? É preciso não esquecer: Nabuco foi o grande reformador social do Brasil, onde nunca houve uma reforma social da extensão e do impacto da Abolição, tudo isso feito de forma legal, por meios estritamente parlamentares, a mais importante da história brasileira.
Qual seria o traço moderno de Nabuco?
É difícil para a gente apreciá-lo, pois vivemos numa era em que predomina o gosto pelo radicalismo. Ele foi uma pessoa extremamente equilibrada, mesmo quando fazia a campanha abolicionista, com a possível exceção de alguns discursos no Recife no início da mesma. Mas, depois da queda da monarquia, ele se tornou o conservador que havia sido postergado por causa da reforma abolicionista. Ele criticou a República por não ter completado a obra da Abolição - incompleta até hoje. Nabuco era o tipo de homem que só se definia em função dela. Depois de 1900, você nota pelo diário que ele se desinteressou pelos aspectos sociais legados pela escravidão. Não me lembro de ter lido nenhuma crítica sua às condições de vida material da população de ex-escravos. Nabuco, lembre-se, foi criado como uma pessoa conservadora. Era, enfim, um liberal conservador. Mexia-se na escravidão, mas não na propriedade.
O Brasil Holandês
Organizador: Evaldo Cabral de Mello
Editora: Penguin/Companhia das Letras( 512 págs., R$ 28)
Joaquim Nabuco Essencial
Organizador: Evaldo Cabral de Mello
Editora: Penguin/Companhia das Letras (632 págs., R$ 32)
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