quarta-feira, 7 de setembro de 2011

255) "Liberalismo", de L. T. Hobhouse, completa seu centenário.


Apesar de já ter o Liberalism em mãos, ou ao alcance do clic do dedo, ainda não tive como lê-lo. Assim, não pude escrever sobre esse livro no ano em que completa seu centenário e tive de me valer de uma outra pessoa (a fonte pode ser conferida aqui) cujo texto reproduzo abaixo. Infelizmente, o debate que ocorre no Brasil é muito pobre em larga escala ou o debate mais rico acaba sendo muito restrito. Há um grande desconhecimento da história das ideias o que, ao meu ver, contribui para certo dogmatismo de pessoas que, em última instância, só fazem mirar seus umbigos. Neste caso, eu não achei  tradução alguma para o português e nunca ouvi falarem dele na universidade. Alguém poderia perguntar: "que importância tem um apócrifo desses? Talvez, pouca".  Eu não teria como lhe responder tendo por base uma análise pormenorizada do livro, mas lhe alertaria que Liberalism fez parte de um importante debate sobre a adequação do Estado inglês às pressões por democracia (abandonando-se algumas das concepções do liberalismo gladstoniano). E talvez ele ganhe mais relevância por corresponder, no plano das ideias, ao longo processo de compatibilização da economia de mercado com a democracia representativa. Hobhouse está na nascente do mundo livre contemporâneo.

Vinícius Portella

Porto Alegre,
07 de setembro de 2011.

O centenário de "Liberalismo"

Em 1911, sob o alento da aliança entre liberais e trade-unionistas, que viria a resultar na criação do Partido Trabalhista Britânico, aparecia em Londres a primeira edição do livro "Liberalism", escrito pelo jornalista, sociólogo e militante político Leonard T. Hobhouse. Concebido como obra de divulgação e elaborado em tom quase panfletário, tinha como objetivo conciliar - a partir de uma perspectiva de evolução histórica - a teoria política do liberalismo clássico com a defesa da justiça social e de um papel mais ativo do Estado, encampada pelos socialistas. Seguindo a senda já aberta por John Stuart Mill e Thomas Hill Green, a obra se tornou uma das elaborações mais populares da corrente denominada "social-liberalismo".

Como herança do pensamento liberal clássico, o autor enumera - a título exemplificativo - um rol de liberdades, cujo conteúdo poderia ser mais ou menos dilatado e reformulado em consonância com a necessidade histórica: liberdade civil (contra o poder coativo arbitrário), liberdade fiscal (princípio da legalidade dos tributos e controle da atividade legiferante por parte da sociedade), liberdade pessoal (compreendendo liberdade de culto religioso e de expressão), liberdade econômica (combate aos monopólios, liberdade de formas contratuais, direito de livre associação), liberdade doméstica (proteção à família e às suas figuras mais frágeis: mulheres e crianças), liberdade local (independência nacional), liberdade internacional (combate ao uso da força nas relações exteriores) e liberdade política (combinação de soberania popular, democracia de massas e aplicação moderada do poder coativo do Estado).  A gênese desses conceitos remontava à luta contra o arbítrio dos regimes absolutistas, iniciada no plano teórico por John Locke e consolidada, no plano prático, pelos reformadores posteriores à Revolução Francesa.

O liberalismo, entretanto, não se esgota nesse conjunto de liberdades, mas só se efetiva pela combinação destas com a possibilidade virtual de que todos os membros de uma comunidade tenham as mesmas chances de atualizar suas potencialidades. Do ponto de vista sociológico, o enfrentamento dessa questão se dá pelo reconhecimento de que a sociedade funciona de maneira orgânica, isto é, o bem-estar de suas partes individuais tem correlação profunda com a vitalidade do corpo social. Para que isto seja possível não basta que o Estado salvaguarde as liberdades acima listadas, mas necessita-se que ele assuma papel ativo, impedindo que cada um daqueles princípios - uma vez reforçado de maneira excessiva - se converta em seu contrário, em fonte de opressão. O exemplo clássico está na liberdade econômica, que, uma vez demasiado privilegiada, produz necessariamente desigualdades sociais e regionais, relegando boa parte da população para condições de penúria da qual não podem sair com suas próprias forças. Um corpo social que convive com um tal estado de coisas jamais poderá atualizar de maneira completa o potencial vital que nele reside.

O fundamento da intervenção estatal não reside na caridade - como defendiam, e ainda defendem, muitos conservadores - mas na cooperação espontânea entre os indivíduos, força motriz do progresso (entendido aqui como liberação de energia espiritual): em uma sociedade que impõe barreiras ao livre desenvolvimento de seus membros, o progresso pode até se manifestar acidentalmente, mas nunca deita raízes profundas. Dito de outro modo, a possibilidade do gozo das liberdades acima mencionadas é fundamental para o progresso e deve ser possibilitada não apenas de maneira negativa, mas também por meio do estímulo estatal. Neste ponto reside o momento de verdade do utilitarismo; a caridade, em si, não é promotora do progresso, mas o balanceamento das liberdades sob a luz da ideia de igualdade maximiza o potencial vital da população e reduz a necessidade da utilização do poder coativo estatal, que só necessita entrar em cena quando pode exigir dos cidadãos um determinado comportamento em respeito ao bem público: a responsabilidade corresponde às reais possibilidades do indivíduo.

A grande vantagem do liberalismo em relação às demais correntes políticas (em especial ao socialismo, combatido por Hobhouse em suas variantes mecanicista e estatista) residiria na possibilidade de apresentação de programas políticos de reformas concretas (algo fundamental para o início da ação parlamentar dos antigos membros das trade-unions) e na continuidade histórica de um pensamento que, ao se auto-aprofundar, permitira a incorporação de novas demandas que surgiam na sociedade civil, num contínuo e prolífico diálogo entre políticos, intelectuais e movimentos sociais.

Talvez as grandes lições que podemos, ainda hoje, tirar do pequeno livro de Hobhouse sejam, em primeiro lugar, a possibilidade de pensar profundas reformas sociais e combater a pobreza sem investir de maneira unilateral no aumento da competência do Estado, excesso que tolhe aos indivíduos um conjunto apreciável de campos em que a ação individual poderia fornecer soluções muito melhores do que as pensadas por técnicos e burocratas. De outra parte, sua reflexão oferece bons argumentos para fazer frente aos excessos cometidos pelos neoliberais, que culminam, invariavelmente, na estatofobia, na alimentação do mito da sociedade civil como panaceia universal e na ignorância da possibilidade que cada liberdade contem em seu âmago de se converter em seu funesto - e opressor - contrário. Revisitemos Hobhouse.

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