Abaixo, um texto sensato de Bolívar Lamounier. Fico, particularmente, contente em encontrar pessoas como Lamounier. Às vezes, tenho a impressão de que a política, no Brasil, é tratada como se não tivesse de responder a imperativos objetivos; como se a política fosse limitada a uma questão de participação dos diversos grupos sociais na condução da coisa pública. Jamais negaria tal dimensão, porém a simples participação de todos os nacionais nos negócios públicos não é a solução para todos os nossos problemas. A política também deve se ocupar dos estímulos necessários ao desenvolvimento de pessoas aptas a lidarem com os desafios que a vida apresenta: seja dando a liberdade para que as pessoas busquem seus interesses e, assim, se desenvolvam; seja intervindo de maneira mais ativa; seja conforme qualquer outra visão. Nenhuma nação se desenvolve dando as costas para suas necessidades presentes e futuras.
Vinícius Portella
Porto Alegre,
31 2158 jan 2011.
Bolívar Lamounier
Como não podia deixar de ser, o terrível desastre ocorrido na região serrana do Rio de Janeiro desatou um angustiado debate sobre responsabilidades. De quem, afinal, é a culpa?
Para 9,9 em cada 10 brasileiros, os culpados são São Pedro e os políticos. E não necessariamente nesta ordem.
Eu me incluo entre os 9,9. Penso que tais tragédias poderiam ser evitadas se o gerenciamento urbano fosse feito com mais seriedade e responsabilidade. As tragédias têm sido mais freqüentes no Rio e em São Paulo, mas desleixo e coisa pior vêm ocorrendo por todos os cantos. Os políticos têm muita culpa no cartório, sem dúvida.
Mas não só os políticos. Quase todos os envolvidos nessa ocupação temerária de espaços e na autorização de construções extremamente vulneráveis. E não nos esqueçamos que tais processos seguem certos círculos viciosos bem conhecidos no universo das famílias de menor renda. A pobreza leva o pobre a querer construir em qualquer lugar; os desastres o colhem em cheio, porque ele construiu onde não devia. Mas quem autorizou ou permitiu a construção? Uma prefeitura, evidentemente.
Seja como for, a responsabilidade maior é dos políticos eletivos (prefeitos, vereadores, deputados ligados à região etc) e de muitos não-eletivos, pseudo-funcionários que na verdade cumprem agendas políticas, com o agravante de serem menos percebidos e inimputáveis).
A responsabilidade, como dizia, é dos políticos eletivos porque eles é que detêm o mandato popular para o exercício do poder público. São eles que chancelam formalmente os atos, influenciam ou decidem a alocação dos recursos públicos e, no limite, determinam o emprego da força policial.
Isto posto, e sem embargo de ressalvas que farei adiante, o fato é que o Brasil está muito mal servido de políticos. Muito mal servido em todos os níveis – do federal ao municipal, da elite ao sub-do-sub. E provavelmente em todas as áreas, não só na do gerenciamento dos espaços urbanos.
Despreparo, incompetência, irresponsabilidade, descaso pelo interesse público, clientelismo, nepotismo, corrupção, roubalheira – you name it.
As próprias campanhas eleitorais – aqui não falo só do Brasil – são atualmente planejadas e conduzidas por marqueteiros que em geral as transformam num grotesco besteirol – em grande parte custeado, acrescente-se, com recursos públicos, em graus variáveis de legalidade. Dado esse quadro, não é difícil compreender certas reações dos eleitores; reações ora de desinteresse, apatia ou desencanto, ora de protesto, não raro irracional e violento.
Sim, no mundo todo, há fortes indícios de que a demografia política está paulatinamente se desequilibrando a favor dos bandidos e contra os mocinhos. Nenhum povo está satisfeito. Os legislativos e partidos, principalmente, estão na lona. Líderes promissores aparecem e caem em desgraça com extraordinária rapidez, e outros não tão promissores ou francamente abomináveis excedem por ampla margem o seu prazo de validade.
Numa discussão mais longa, precisaríamos indagar que alternativas têm sido discutidas, se elas são viáveis – o que fazer, enfim. Hoje com certeza eu não vou chegar lá, outro dia, quem sabe.
No momento, a questão que desejo suscitar é por que está ocorrendo essa deterioração da classe política, diria até esse esvaziamento da política como atividade. Que aconteceu? Parece-me fora de dúvida que tal processo, pelo menos no caso brasileiro, não resulta de uma causa isolada e sim de um feixe de causas diversas.
Começa que perdemos muitos líderes importantes num curto espaço de tempo. Refiro-me a políticos de alto calibre intelectual e moral como Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Mário Covas, Teotônio Vilela, Franco Montoro, Roberto Campos e outros. Neste nível, estamos numa entressafra, mas temo que o quadro mais amplo seja de um real esvaziamento.
Por que não se estimula a entrada de sangue novo na política? Por que a renovação não ‘renova’, sabendo-se que uma parcela substancial da representação legislativa não consegue se reeleger? Por que não surgem outros tipos, novos perfis? Numa resposta sucinta, direi apenas que existem realmente dois gargalos – um institucional (estipulações da legislação eleitoral, partidária etc) e de poder (hierarquias internas dos partidos), outro de motivação: poucas pessoas de alta competência e qualidade moral se dispõem a enfrentar o dia-a-dia da carreira política.
Como vêem, o quadro completo precisa ser montado aos poucos, passo a passo. Com o que expus acima, já me atrevo a afirmar que o problema da classe política brasileira não é só sua má qualidade no momento, em termos estáticos. É pior que isso: um processo de empobrecimento ou esvaziamento que talvez nem tenha chegado ainda ao fundo do poço. Vou tentar ser mais claro.
Minha hipótese é que de duas ou três décadas para cá, os políticos por “vocação” rarearam. Seu espaço vem sendo ocupado por aqueles de quem Max Weber, com mal-disfarçado desprezo, dizia que vivem “da” política, não “para” ela. Ocupado, de um lado, por clientelistas, picaretas e ladrões, de outro, por certo bovarismo enragé: reformistas ou revolucionários de vários tipos e procedências, muitos em gozo de férias e não poucas viúvas do socialismo.
Viver para a política é dedicar-se a ela como a uma vocação; é vivê-la como uma atividade auto-suficiente, gratificante, um ideal a ser buscado for its own sake. Viver da política é vê-la como uma opção profissional entre outras e valer-se dela como fonte de renda, de reforço ou complemento a atividades privadas, como palco para exibicionismo, ou então, no caso dos ideológicos, como um setor a ser ganho por seu valor tático, em termos de recursos e chances de proselitismo.
Meu ponto principal refere-se portanto a uma mudança profunda que parece estar em curso na composição ou no perfil da classe política : um aumento da proporção que vive da política e a conseqüente diminuição da que vive para a política. No Brasil, este fato parece-me perceptível com especial clareza, mas há sinais dele em outros países. Em graus e com conseqüências variáveis, parece-me existir em quase toda a região uma debilitação do centro, um recrudescimento do populismo, um aumento mais que proporcional da influência de operadores e clientelistas, e o surgimento de um ator novo – um esquerdismo meio bovarista, meio carbonário.
No caso brasileiro, é preciso lembrar também – como reforço à hipótese da deterioração -, a centralização do poder e do dinheiro na na órbita federal. Sendo o Brasil um país continental e de organização federativa, a dependência financeira de estados e municípios em relação a Brasília tem um peso enorme em todo o processo político. A verdade é que numerosos políticos são vistos (e se vêem) tão-somente como despachantes dos municípios ou setores sociais que representam. Vão a Brasília fazer lobby, só isso.
Existe, portanto, um círculo vicioso. A deterioração do Legislativo e dos partidos agrava a má reputação dos políticos, esta afugenta potenciais candidatos de boa qualidade etc. Ou seja, a deterioração leva a mais deterioração, na medida em que desestimula possíveis talentos.
Com o descrédito popular da instituição legislativa e dos partidos, é razoável supor que a carreira política se torna cada vez menos atraente para eventuais interessados em viver para ela, e cada vez mais para os que esperam viver dela. O recrutamento de novas gerações para cargos eletivos torna-se cada vez pior.
Opera-se desta forma uma seleção natural invertida, perversa, e o circuito se fecha. Se esta hipótese for correta, podemos dizer que uma parte importante da “verdadeira” política vem se ‘desgrudando’ dos cargos políticos eletivos que historicamente a ancoravam e migrando, ou para a burocracia – onde se torna quase invisível e totalmente unaccountable – ou para o setor privado, onde reencarna em diversas atividades profissionais.
Observe-se, porém, que política não é só o que acontece em Brasília, no Congresso Nacional ou nos partidos. A política está por toda parte: nas profissões, na imprensa, nas universidades, dentro de empresas, e até no clero. Para o bem, mais que para o mal, há lideranças com vocação pública emergindo em todos esses setores. Isso é muito bom.
Mas esta constatação não nos trará grande consolo, se nada for feito conscientemente no sentido de reverter a deterioração da política institucional. Sem um real esforço desse tipo, esse processo mais amplo e positivo que vejo ocorrendo em vários setores da sociedade tardará muito a se fazer sentir na carreira política eletiva.
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